Almandrade
O retorno e a dúvida da poesia
A poesia é um conhecimento à parte da
razão tecnocrata que rege a sociedade contemporânea, hoje em dia, o
homem se defronta com outras oportunidades de linguagens, outros
conhecimentos, que deixou de lado o hábito da leitura,
principalmente a leitura de poesias. Diante da informática, da
música popular, do discurso político, não há lugar para a poesia.
Mas de repente um surto de poesia tomou conta da cidade, saraus,
recitais, debates, publicações, vão se espalhando e ocupando
pequenos espaços nos centros urbanos, bares, cafés, bibliotecas.
Páginas na internet. Parece que a poesia voltou a fazer parte da
cidade. Mais uma ilustração da crise da linguagem, do pensar e da
cidadania? Afinal de contas, poesia passou a ser tudo que alguém
escreve movido por uma “inspiração”, uma revolta, uma paixão, um
discurso livre e aleatório, como: a frase da mesa do bar, o bilhete
da namorada, o discurso de protesto, etc. O poeta que já foi expulso
da cidade, volta ao cenário urbano na condição de sintoma da cidade
grande.
A POESIA E A CIDADE
“Os poetas nos ajudarão a descobrir em nós uma alegria tão
expressiva ao contemplar as coisas que às vezes viveremos, diante de
um objeto próximo, o engrandecimento de nosso espaço íntimo.”
(Bachelard)
Desde quando a cidade é objeto de
trabalho de especialista, ela passou a ser um corpo fragmentado e
perdeu sua geografia poética. Primeiro foram os filósofos que
expulsaram os poetas de sua república, depois foram os técnicos que
destronaram a filosofia. Custou caro ao filósofo aceitar que o saber
foi uma invenção do poeta, que a eternidade da Grécia se deve
primeiramente a um Homero e depois a um Platão. Nessa mudança de
século, a filosofia acabou ressuscitando um Sócrates arrependido,
solicitando do poeta seu retorno à "polis" .
Pudera, em épocas de crise sempre se
apela para o poeta, ele que nada sabe, foi adivinho do passado e é
livre para falar de suas emoções. Mas ele nada pode resolver com
relação aos equívocos dos especialistas do urbano, a não ser
restaurar a poesia perdida.
A cidade de políticos e de técnicos
tem problemas mais urgentes, para se preocupar com a poesia.
Acreditava-se que a tecnologia era uma solução universal, mas se
mantêm longe de dar respostas às demandas de habitação, segurança,
transporte e educação. Não se canta mais a cidade, fala-se para
lamentar seus problemas. A cidade precisa da poética e do
pensamento. Quem se ocupa de conceitos sabe, sem negar a importância
da tecnologia, que a cidade atualmente precisa mais do exercício da
cidadania e das idéias, do que intervenções técnicas sem uma
compreensão mais ampla dos seus problemas. As cidades modernas se
ressentem da carência de uma nova idéia de planejamento urbano que
não a veja exclusivamente como o cenário do mercado de trabalho.
Pois a imagem urbana não se restringe àquilo que a percepção capta,
é muito mais o que a imaginação inventa com a liberdade poética. As
musas sabem que o poeta não vai salvar a cidade, mas ele é quem lida
com a
fantasia e o devaneio, indispensáveis para o sonho de uma outra
expectativa de vida urbana.
A POESIA E A LÓGICA DA LINGUAGEM
“A poesia é uma arte da linguagem; certas combinações de palavras
podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos
poética.”
(Valery)
O poeta vive num canteiro de obras. A
musa, o acaso, a razão, o sentimento, os pensamentos abstratos são
matérias primas para a sua poesia. Ele produz a partir da leitura de
textos alheios, articulando idéias e costurando a linguagem. A
poesia é um trabalho que exige de quem faz uma quantidade de
reflexões, de decisões, de escolhas e de
combinações. As leituras e as experiências modificam a escrita, as
palavras não são totalmente espontâneas, como nas pinturas de um
Pollock, há um trabalho e um cálculo da escrita. A linguagem poética
difere da linguagem que utilizamos para a comunicação diária. Cada
poeta explora a linguagem na busca de um acontecimento inesperado,
de uma experiência singular. A linguagem cotidiana desaparece ao ser
vivida, é substituída por um sentido. A poesia não, ela é feita
expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser
indefinidamente o que acabou de ser.
Numa época marcada pelo
desaparecimento do durável, transmutação rápida dos valores, sem
tradição poética, a poesia retorna como um lugar de experiências
contraditórias, para atender uma necessidade de lazer e
divertimento, do que uma vontade de saber. Os saraus, recitais e
debates têm mostrado uma ausência de uma percepção mais ampla das
contradições da cultura, particularmente da literatura. A poesia que
já participou como protagonista nos movimentos de vanguarda nos anos
20 e 50/60, reaparece na cena urbana deslocada de sua materialidade
para falar de aparências e emoções.
Almandrade
Artista plástico, poeta e arquiteto
|