Almandrade
A morte da reflexão
[in A Tarde, 02/04/1999, caderno Cultural]
“A crise não afeta apenas a arte
contemporânea, a produção de novas obras de arte: se a arte não
continuar, tudo aquilo que resta da arte do passado e que constitui
ainda hoje uma parte notável do ambiente material da vida, perderá
todo o valor e acabará por ser abandonado e destruído.”
(Giulio Carlo Argan)
Almandrade
O inútil trabalho do olhar debruçado
na incerteza de uma definição de arte se perde na impossibilidade de
uma verdade definitiva. Estranha, a obra de arte é aquilo que é
reconhecido como manifestação de um saber. Uma aventura
imprevisível, um jogo sem fim, sem ganhador nem perdedor. A arte
está sempre nos propondo mais problemas que soluções. A relação de
tensão e desconfiança passou a reger a arte contemporânea, pela sua
condição de ser provocativa e recusar a contemplação passiva.
Com Marcel Duchamp, a arte passou a
ser qualquer coisa deslocada para o circuito da arte. Um
objeto/lugar de um pensamento ou idéia, independente do verniz
textual e da autorização do curador. O artista era um pensador. A
produção do belo era a transformação de uma matéria-prima em um
produto simbólico, segundo a razão e a sensibilidade de um artista.
Esse processo de inventar o objeto
estético se deteriorou com a facilidade e a rotina de um fazer
mecânico que se repete sem o hábito da reflexão. O tempo da arte
parece condenado diante de paradigmas desacreditados. O artista
precisa ao menos conhecer o seu ofício, é indispensável ter
referências. As chamadas novas linguagens e os novos suportes
utilizados sem a precisão do raciocínio são inovações duvidosas,
muitas vezes, aquém dos suportes tradicionais. A inteligibilidade
fica em segundo plano. Num cômodo deslize, um estilo fácil dominou a
contemporaneidade, como se a arte fosse apenas um clichê, uma moda,
ou um evento para o entretenimento de um público.
A obra passou a ser secundária. E quem
decide é o curador, o marchand, o cronista social ou o produtor
cultural. O objeto deslocado do contexto de origem, por determinação
de um artista, é sustentado pela “teoria” imaginária de um curador.
Dessa forma a arte enquanto engrenagem de um conhecimento específico
deixa de existir. Por outro lado, esse suporte teórico é incapaz de
fazer uma leitura crítica desse sucateado trabalho de arte e
situá-lo no seu devido lugar cultural.
Um fluxo de produtos artísticos
intenso e descontrolado deixa de ser uma surpresa que
desterritorializa certas verdades preestabelecidas do olhar e
compromete as perspectivas do patrimônio cultural. A imagem da arte
não é um fragmento do mundo sensível destinado a ornamentar uma
experiência mundana; mas um esquema de um ordenamento do espaço
plástico, a partir de um modelo abstrato de pensamento. Essa
qualquer coisa chamada arte, que se utiliza de fáceis e limitados
procedimentos, faz da arte contemporânea um estilo simulador de
complexidades, cada vez mais incentivada pelos salões, pelo mercado
e pela crítica inventada pela indústria cultural.
A arte contemporânea ficou na moda,
faz parte do cotidiano dos atuais salões de arte. O belo é, para os
novos especialistas da arte, a negação do pensamento, uma
brincadeira da sociedade do espetáculo. A arte foi confinada a um
campo restrito de experimentação, que tem como referência a tradição
da facilidade. Os salões estão de cara nova, mas continuam com os
mesmos modelos conceituais, o mesmo processo burocrático de outros
tempos, que reforça a idéia de cultura como uma superstição, e não
algo real.
No momento em que a diluição e a
facilidade são as regras do fazer artístico, a reflexão cessa. A
ausência de estilo converteu-se num estilo inculto e inseriu o
contemporâneo na periferia da cultura, protegida pela publicidade do
olhar do espetáculo.
Almandrade (Antonio Luís Morais Andrade) é
artista plástico, arquiteto, ensaísta e poeta.
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