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Jornal do Conto

Ana Guimarães


 


A primeira


 

 

Hoje, se pudesse escolher, queria morrer. Se morrer fosse fácil, se não fosse mais triste que viver, sem caretas, com anestesia, queria morrer. Se tivesse coragem suficiente (ou covardia?), se não me pesasse a ameaça de atrapalhar o carma, versão moderna de crime e castigo de astrólogo e espírita, essa frágil alma empalideceria rumo ao nada. Anseio enterrar, para sempre, os trapos de razão que ainda me restam. Parece que um sádico ceifador passou por minha existência destruindo projetos um a um, semeando fracassos, sem comiseração. Quanta fronteira: o mundo foi ficando cada vez mais estrangeiro. Após essa festa sacrificial e alguma resistência heróica, sucumbi. Não creio mais ser possível de tanta ruína recomeçar.

E cair na tentação de tentar dar um brilho na vida de um filho, plasmar seus fantasmas, já que a minha não tem mais solução, é loucura, escavar a própria alienação. Fico mortificada ao vê-lo – e nada poder fazer para impedir – tomar uma decisão errada que com certeza lhe fará abrir as portas do desespero ali adiante. Mas será que isso é politicamente correto? Sim, porque se a decisão é dele... pode o homem ponderar sobre o que não vê?

Minhas escolhas determinaram veredas, muitas vezes oblíquas, e enlamearam outras, pra sempre atoleiros. Agulha. Novelo. Pontos trançados. Pulôver pronto. Voltar atrás, impossível. No mundo real não tem essa de rascunho, de esboço. Escolheu uma coisa, perdeu outra, várias. Nada desse papo de ser polivalente, de que é possível tudo fazer porque até espacial, geográfica e temporalmente as estradas se excluem. E afinal, a gente não escolhe nada mesmo, é escolhido. A estrutura determina, o meio. A sorte. Os astros. O destino. Deus.

Quero voltar a ser criança, bailar irresponsável, leve, inconseqüente. Viver o que o momento presente me consente sem me preocupar com a flor do futuro. Sair nova em folha de cada tombo, de cada decepção. Fênix, como essas modernas velas de aniversário que teimam em reacender. Adolescente de novo, coração apaixonado, mil planos, confiança, percebendo o universo como o quintal de casa: tão vasto quanto familiar e seguro.

Amadurecer foi passar da onipotência da juventude (eu quero, eu posso) para a castração parcial ou total (não deu, não foi possível, o outro não deixou; qual outro mesmo?) da idade adulta.

Sinto-me como trem descarrilado, vagou fora dos trilhos e já não vai a lugar nenhum. Sem itinerário, sem meta. Corpo inerte, largado, exposto, desconjuntado. Casca sem o fruto. Passageiro sem bilhete, perdido, longe de casa. Uma casa destelhada, destroçada pela força de um furacão. Não ruiu por inteiro, não veio abaixo, mas também não resistiu à violência dos maus ventos e sucumbiu parcialmente. Manter-se de pé é exaustivo, somente às custas de muito sonho, de muita fantasia.

Abri mão da cicuta por hoje, mesmo sangrando. Vim aqui fazer o que quer que isso seja. Quer saber? Já me sinto melhor, mas posso lhe afiançar que o mérito não é de quem escuta e sim de quem fala. Até a próxima sessão.

 

 

 


 

11/11/2005