Ana Guimarães
Sete vidas
Quando a velhice
nela se hospedou de vez com face de doença terminal, subjugando-a,
anunciando a morte, Joana retornou à casa abandonada. Retirou a
placa de vende-se, mandou capinar o outrora vicejante jardim,
consertar e pintar a cerca de madeira, reparar as vigas de
sustentação da varanda tomadas por cupim ou broca. Ah, quem dera
pudéssemos fazer o mesmo com a gente, suspira enquanto vê o técnico
trabalhando: tomara tantas injeções quanto, sem resultado. Acabara
desistindo, apesar das súplicas de seus médicos e familiares;
largara tudo sob protestos de todos. Sozinha de volta a casa mandou
trocar lajotas do piso que o alto tráfego irremediavelmente
arranhara. Raspar e pintar as bases das paredes perto do chão,
tomadas pelo mofo proveniente da umidade do solo muito próximo à
lagoa. Abriu para arejar todos os armários. Colchões e travesseiros
expostos ao sol. A roupa quarando no varal, cheirando a limpeza.
Ligou a geladeira e a abasteceu. As quatro bocas do fogão acesas:
tanta comida, parecia que receberia convidados além dos que já
trouxera: a saudade e as boas lembranças.
Mirando-se no espelho do fundo do
corredor se viu décadas atrás, jovem, feliz, saudável e rodeada de
gente. Áureos tempos tinham aí vivido. Quanto alvoroço. Quanta
balbúrdia. No silêncio da noite que avança, entre um grilo e outro
quase pode ouvir o passado feito ouvirá daqui a pouco sua oitava
Bachiana, posando de maestrina como sempre gostou de fazer, desde
menina. Insana evocação, real como uma alucinação, praticamente
podia vê-la, tocá-la. A casa tão cheia, constantemente algo
faltando: uma almofada do sofá da sala passando por travesseiro, uma
colcha servindo de coberta, toalhas de rosto enxugando o banho de
uma visita extra, bem-vinda em qualquer ocasião. Quantas noites
dormira lá fora enrolada na rede protegendo-se daquele ar frio que
só aparecia na madrugada e despedia-se assim que o dia clareava,
para dar lugar ao soberano calor. Quantas trilhas de formiga,
displicentemente, sonolenta, acompanhara, nas raras silenciosas
tardes quentes. Flores que as crianças semearam (e vira ambas
crescidas). Árvores frutificadas. Quanto acordar com piados de
filhotes de passarinho no ninho, no telhado logo acima do seu
quarto. Quantas vezes deitada na grama quieta, o livro deixado de
lado, só observando o vôo baixo do gavião, o saltitar do bem-te-vi
na beirada do muro, os rasantes do nervoso beija-flor.
Se um gênio da lâmpada aparecesse
agora talvez se espantasse com o seu pedido: voltar atrás no tempo,
igual a um filme que se rebobina, viver tudo de novo, a mesma vida.
Até os episódios dramáticos, como o susto daquele dia, Luísa com o
pé sangrando, levada às pressas para o hospital para dar ponto.
Ganharam novos amigos, o vizinho que acudiu era médico e passou a
freqüentar com a família, assiduamente, seus churrascos de domingo.
Ou quando Leandro, o caçula, se perdera andando de bicicleta nas
imediações e fora trazido são e salvo pelo filho do vigia do
condomínio vizinho, daí em diante seu inseparável companheiro de
folguedos. Mesmo o assalto à mão armada que num fim de tarde de
domingo sofrera, o único na antes e depois calma região, praticado
por gente de fora que ali viera para um amistoso jogo de futebol.
Levaram o carro com as malas dentro e lhe deixaram só o peso das
horas de tensão pelo episódio vivido e a compaixão por gente capaz
de tal barbaridade. Escapou ilesa, nenhum arranhão a não ser na
alma: por muitos meses tivera pesadelos de repetição com os
bandidos, tentando elaborar o trauma. Daí em diante começou a
espaçar as idas, só viria acompanhada.
Seria sua última viagem. Sem volta.
Sua última morada antes da derradeira. Refletiria – se o tempo,
generoso, permitisse – sobre sua vida plena, suas atuais mazelas,
seu envelhecimento. Fizera pela casa o que não mais podia fazer por
si mesma. Consertada, reformada, bem cuidada assim, outras sete
vidas viveria. Seus alicerces eram bons, sólidos, sobrevivera às
intempéries, à violência. Joana não, encaminhava-se para a demolição
interna espontânea, apesar de que foram dias (e noites) suntuosos de
linguagem. A divina, musical, e a dos homens: falando pelos
cotovelos, pelos quatro cantos, da calçada ao quintal dos fundos, do
nascer ao por do sol. A casa escutando, acolhendo. Herdeira de sons,
de energia, e finalmente de seu corpo, servindo-lhe de pré-epitáfio.
Encontraram-na caída, serena, um leve sorriso esboçado. Ao seu lado,
olhar triste e zeloso de quem entendia e sentia mais do que ninguém,
seu velho gato, incrivelmente rouco de tanto miar.
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