Ana Guimarães
Segredo
Meu pai dizia que
mulher não vale nada perto de um homem.Tudo pros irmãos, nada pra
mim. Nem terminava a pergunta, sua resposta era não. Mas a que mais
pesou foi: não, não vai à escola. Aprender a escrever bobagens, ler
bilhetes indecorosos, trazer dever de casa pra fazer? Perda de
tempo! Quem vai ajudar sua mãe? Roupa pra lavar, camisa faltando
botão, louça suja amontoada na pia, comida queimando. Depois, pra
quê? Trabalhar fora quando ficar grande, nem pensar, vai se perder.
Lugar de menina é em casa. Sair só pra igreja. E mesmo assim,
cuidado com padre Paulinho, muito novo, bonitinho, sonso,
interessado demais em você. Resolvi ser homem, subi na cadeira e
defronte ao espelho cortei minhas tranças de uma só vez, sem dó nem
piedade. Levei surra de cinto, sem derramar uma lágrima
sequer.Teimosa, aprendi a ler e a escrever sozinha, escondida.
Primeiro manchetes dos jornais, capas de revistas, bulas dos
remédios. Saboreava as letras como sorvete de chocolate aos
domingos. Manuais, cartazes, reclames os mais diversos faziam parte
do meu cardápio. Parecia que o mundo crescia, espichava, e eu junto.
Brincando com os números, aprendi a contar: mágicos algarismos, o
quanto representavam! Aos sete, pra espanto de muitos, já fazia
troco, media com fita métrica e pesava na balança da vendinha de tio
Carlos. Entretida com o globo terrestre que girava, girava, decorava
capitais e logo ajudava nos roteiros de viagem da agência de
D.Neuza. Pressionados pelos parentes e vizinhos, me matricularam na
escola. Tirei dez em tudo o que foi matéria, entrei direto na
terceira série. Só na prova oral é que me pediram: pode falar mais
devagar, menina? Não estamos conseguindo acompanhar a sua fala, que
dirá o seu raciocínio! Que novidade, nem eu! Tudo muito rápido se
descortinava pela minha mente, como as paisagens que via passando
pela janela do trem quando viajava pra cidade grande. Passava de ano
com medalha de ouro, prata ou bronze. Meu pai começava a se orgulhar
de mim – seus olhos o traíam – mas não dava o braço a torcer.
Elogios só às minhas costas, as amigas me contavam. Pela frente,
jogo duro, sempre foi assim. Aos dezesseis, fiz vestibular na
capital, hospedada na casa de parentes. Quando viram meu nome em
primeiro lugar na lista dos aprovados todo mundo chorou, menos eu,
homem não chora. Mal o ano letivo começou: você entendeu? Me
explica? Sabe essa questão, me dá cola? Me dá aula particular? O
professor quer que você seja monitora. O diretor, contratá-la assim
que se formar. Eu queria mais, muito mais. Literatura, filosofia,
línguas, artes plásticas, cinema, teatro. Música: ler partitura
seria duplicar o mundo. Com o primeiro emprego, sorvete de chocolate
todo dia. Tenho os joelhos cheios de marcas, quando criança vivia
correndo, tropeçando e caindo. Era quando eu temia que mais me
revelasse, mas não. Só pros observadores, é claro, e eles eram
poucos. Meu irmão Toninho, que trocou de lugar comigo e queria
porque queria ser mulher, sempre protegido por mamãe, era um deles,
falava assim, desconfiado: até parece que a minha irmã quer abraçar
o mundo com as pernas, como se ele fosse desaparecer de repente, ou
ela. E, nessas horas, até bá preta, sempre silenciosa, apenas
arrastando o olhar doce e profundo pela casa, exclamava: essa menina
sabe tudo, sem sentido aparente. Eu sabia mesmo. Embora não
compreendesse, sabia. Nunca satisfeita com as explicações. Nada de
acidente, de culpa dos outros, de coisas fora do lugar, de... Veja
fulaninha, tem as pernas clarinhas, olha pra onde anda, tem modos,
comporta-se como mocinha, não como potro selvagem como você, pulando
daqui prali, pinoteando, esbarrando nas coisas, tudo derrubando e a
si própria. Se machucando, cheia de manchas roxas. Pára com isso,
com essa coisa ruim que não te dá sossego, papai dizia. Que te
provoca, instiga, alucina, você tem pressa de quê? Fica quieta que
nada disso acontece. Acontece que eu não sei como evitar. Sou assim,
caio e levanto. Tenho que viver tudo ligeiro, aproveitar o tempo que
me foi dado, e sei quanto, mas é segredo.
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