Metal sem Húmus, de Dércio
Braúna
PAPANGU - Revista do Rio Grande do
Norte, ano 6, nº 62, abril/2009
Autores & Obras [p. 42-43]
Mais um livro de poemas do cearense
Dércio Braúna, Metal sem húmus, 7Letras, 2008. Lavra de um daqueles
vates que fazem da escrita “uma arma grávida de futuro”, como consta
na dedicatória do tomo.
“A escrita não pode esquecer a
infelicidade de onde vem sua necessidade.” – Michel de Certeau, em A
escrita da história. Espécie de vaticínio do que nos espera?
Na apresentação, “Das páginas
admiráveis impossivelmente condensadas no poema”, um pouco da (des)razão
contida nos versos de Braúna:
“Numas suas palavras sobre a origem
da poesia, Nietzsche nos diz do aparecimento da poesia como forma de
suavização da ferocia animi do homem.
Se assim foi, há contudo que se dizer
do haver de tempos em que justo o contrário se dá, tempos em que a
ferocidade de ânimo constitui-se no próprio corpo, na própria
ossatura da poesia.
Eu vivo num destes tempos.”
Tempo de dor, ao passo que de lirismo
pungente; de lágrimas e procissão de degredados. Denunciados pela
dor e pelos olhares, ocultos por detrás de olhos pálidos e, de vez
em quando, brilhantes. E, no oco desse brilho, a luz-palavra
clarividente de um aedo a escarafunchar, e decifrar, tais ossadas do
cotidiano.
De início, “Oratório ao açougueiro sem
câimbra nos braços”. “Poesia, máquina perversa cujo cortar lhe
aumenta mais o corte...” – alerta-nos Durval Muniz, em A invenção do
Nordeste e outras artes. Dércio, então, nos confidencia o seu modos
faciendi: “amolo minha lâmina/ como quem ensaia dizimentos e cantos/
ao som de coros de ambivalentes arcanjos.”
E este resenhista, ambivalente corista
de estrofes alheias, arcanjo de métrica malsã, se embevece com o
fulgor do poema “Açougueiro sem câimbra nos braços”. Quando a
descrença se apresenta na página, dá-se envolta em beleza, luzeiro
indescritível. “Não há para onde correrem/ as crianças/ ou a poesia/
sob suas telas/ de cores sem nascença –// tudo nelas adoeceu de
silêncio.” – denuncia Dércio, em “As cores sem nascença”.
Uma voz a serviço de outras vozes, de
seres inumanos, paralisados, sem acesso, ou direito?, ao pensar. “Se
assim é, pois que a poesia que disparo não podia (como poderia?) não
se armar dessas alheias vozes, dessas com quem partilho a
contundente desgraça de fazer (ou tentar ao menos) da escrita uma
arma grávida de futuro.”
“O braço de meu carrasco é minha
fortaleza.” – revela-nos, corajoso, antes de presenciarmos “A
matilha de sóis que preparava”, com: “O peso dos ares/ em que me
ergo/ verga-me, ao mais/ imo do osso,/ a matilha de sóis/ que
preparava.”
Dércio Braúna: a metafísica do (des)crente
A mão que nos desvela o poema
“Metafísica aos gritos” dispensa comentários: “Solitário,/ o cão
espera da noite/ a garganta que lhe alteie/ escuro a dentro.//
Soturno,/ um homem se diz/ pela garganta que essa noite prepara/
esmurrando o céu/ escuro a dentro.”
Braúna usa o artifício da
intertextualidade, é hábil na inserção de versos de outros poetas em
meio aos seus. Numa colcha cingida a capricho, urdida em zelo, de
escola. Como em “Ao rés da fala”: “Porque aquilo que escrevo pode
ler-se no escuro,/ à luz do bicho/ que urra,/ que grita/ (com as
entranhas na garganta)/ dentro da minha cabeça.” Justa homenagem a
António Lobo Antunes e ao contista Jorge Pieiro.
Em “Sonoro magma que difícil
esplende”, um pouco do método do artífice da palavra de Limoeiro:
“Parto para o poema,/ a dentadas,/ com todos os meus caninos,/
molares,/ incisivos –/ gosto de lhe ver a rasgadura,/ o lanho,/
qualquer seiva,/ qualquer coisa/ que escorra,/ que diga ao predador/
que é morta a presa –/ ainda que sabido seja,/ de antemão,/ a
ilusão:/ no reino do poema,/ bem se sabe,/ o pobre diabo/ que o é o
poeta/ é a presa/ mil vezes vencida.”
O poeta sabe que muitos darão seus
“braços a mover/ máquinas e máquinas/ que produzirão,/ mais que
coisas,/ signos de coisas/ que nos hão-de fabricar.” E, assim, a
poesia (re)surge, túrgida, incauta, teimosa: “como uma pancada,
melodia surda e sem trégua dentro da minha cabeça, me chove um
verso, infeliz – bailarino insone sem descanso...”.
Braúna desfila sua lírica sem
titubeios, asseado pastor de construções inusitadas, entretanto sem
afagos a invencionices ocas, apenas atento, e ciente, de que a
aflição de hoje requer uma forma nova, mais afeita a esses “pássaros
famintos (o mundo que suas asas cansadas não dizem) e essas
paredes... – a mais dura: esta, que me cresce dentro.”
A lição da faca e dos ossos
No mais das vezes, Le foge da métrica
porque sabe da lição da faca e dos ossos, que exige o verbo ferir em
vez do cantar. Acerca “Da memória da casa ruída”: “Se habitei esta
casa, hoje me habita sua memória, sua precária memória – forte
tanta! –, sua memória-força carregada de vozes latejando contra a
escuridão que se lhe vai semetando.// Esta casa hoje sou eu –/ e o
que a vida acrescenta:/ um pouco de sonho e não.” Num infausto (?)
“Diário de um poeta que jamais viera a ser”. “Nesta casa eu fui
deus.” – conclui.
Em seguida, Braúna reconhece, em “Do
não-saber que pronuncia”: “Fui sempre esse estrangeiro/ das coisas
que me erram.” Para, logo depois, propalar: “Mas sei:/ o homem é
nunca essa / pronúncia que lhe chamam. Há/ sempre um outro mais
fundo – um/ não saber que é tudo.”
Enquanto a morte se atrasa, “munir-se
até os dentes com suas farpas;/ lecerar a couraça em seus gumes,/
espatifar a lira,/ forjar outra matéria (ainda língua) depois de
tudo...”. E Dércio Braúna assim procede, carregando os escombros da
“própria nascença:/ uma pobre morte particular/ para um dia sem
ênfase –// em que talvez um violino/ console um pássaro só.” Esse
tipo de surpresa lírica, em meio aos despojos dos dias, traça um
arco-íris de encanto, e espanto, na sua fatura poética. Um quê de
esperança na terra calcinada, cemitério de cruz? “Carvões
enfurecidos/ acendendo/ esse chão (violento) da vida.”
Toda essa poemática – “Pela caridade
de suas mãos e dentes” – denuncia, e convence-nos, que o mais certo
amor é o que “temos pela rudeza das coisas”, pois o homem é “esse
bicho [que] talha sem descanso/ dentro da coisa milagrada”.
E minha carne trêmula (parafraseando
Braúna), ao (re)ler Metal sem húmus, mal contém toda a precariedade
da minha resenha. No final, resta-me uma certeza (caso me fosse
possível uma certeza): “no coração da vida,/ o tecido de seu
explosivo músculo é/ isto: gume e brisa, metal e húmus.”
“Este é um livro-legião.” Bem
guardai-o.
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