Ana Peluso
Zé Menino
Zé Menino, o
mulato, entrou pela porta adentro, o fato: mãe de Zezinho esticada,
susto nos rostos presentes. Zé Menino escafedeu-se. Foi se esconder
no armazém do tio de seu primo. Porém nem seu tio, nem seu pai.
Apenas tio de seu primo. Quando o encontraram, dormia o sono dos
conformados. A mãe, o corpo jazia onde jazem todos os corpos, quando
terminam sua jornada. E Zezinho perguntou:
- Cadê minha
mãe?
Como no
interior, naquela época, psicologia infantil não existia ou sequer o
conhecimento dela, o que teve Zé Menino foi apenas o relato da morte
de sua mãe. Inconformado, escafedeu-se de novo. Por nove dias andou
em meio ao matagal que circundava a fazenda, fazendo de conta que
tudo era mentira e perguntando ao criador o porquê de tanta ira
sobre cabeças inocentes. Não obteve resposta. Apenas uma boa surra
pelo sumiço (já não lhe bastava a mãe morta?).
Mas ninguém o
ouviu. Justamente por isso apanhou.
- Já não lhe
bastava a mãe morta?
Zé Menino
cresceu, casou, fez nove filhos, tal qual os nove dias que passou em
meio ao mato. Dos nove, três estão vivos. Nunca os surrou. Sua
mulher já se foi. Continua ele impávido, ereto em sua paciência de
entender o por que das pessoas irem. Nunca compreendeu. Contam que
faz moda de viola pra ver o tempo passar. De mulheres, basta as que
teve. Do mato nunca saiu. Quando contava vinte anos achou que havia
entendido o porquê da carne dura da morte, quando perdeu seu melhor
amigo, o Brotoeja. Chamavam-no assim, por ter ele a pele cheia de
manchas arroxeadas. Também era cantador. Foi ele quem ensinou Zé
Menino a pegar na viola e segurar os trastes para que o som saísse.
Foi ele quem ensinou Zezinho a enamorar as moças da roça com as
cantigas extraídas do instrumento que ambos foram comprar na cidade
grande. Uma aventura! Zé Menino e Brotoeja se perderam no caminho e
quando chegaram à cidade, após caminharem por dias, estavam magros e
imundos. Porém sorriam nas orelhas enquanto escolhiam o instrumento
mais apropriado às suas mãos.
Zé Menino e
Brotoeja eram que nem unha e carne. Se ficassem muito tempo um longe
do outro, diziam que doía.
Brotoeja não
casou. Não deu tempo. Seu corpo franzino foi encontrado no mato por
dois dos empregados da casa grande. Ninguém sabe o que aconteceu.
Quem faria tal horror? Pobre do Zé, amigo assassinado.
Saiu até no
jornal da cidade vizinha.
Hoje, Zé Menino
não lê jornal, não senhor. Diz que dá arrepios e que lhe demora
muito a leitura, pois não aprendeu ler de compridinho.
Apenas faz moda
de viola e anima as festas da roça.
Certa feita
estava ele a puxar o cavalinho, quando as patas do animal lhe
acertaram em cheio! Foi jogado para o outro lado do estábulo.
Levantou-se, sacudiu as vestes e pediu desculpas ao pobre animal,
por ter lhe puxado com força. Dizem que o cavalo só não respondeu,
porque não sabia falar. Mas nos seus olhos, o brilho da compreensão
apareceu. Zé conta pra todo mundo!
Jura que é
verdade de falar com os animais, o que ninguém duvida. Apenas as
respostas dos bichos viraram chacota na vida do Zé. Mas ele não
liga, se ninguém acredita. Continua jurando que é verdade. Se a
pessoa zomba, pára de falar, apaga o pito, cata a viola e entra pra
dentro de casa.
Pra desemburrar
demora. Zé Menino é danado quando está nas avessas. Quando Maria
Teresa (sua terceira filha) se casou, Zé não foi ao casório e a
menina entrou com o tio do primo do Zé, que por essas alturas, já
estava mais ou menos naquela curva da vida, onde não se sabe quem
está casando, e muito menos com quem.
Mas foi assim
mesmo. Entrou com a noiva chorosa no lugar do Zé, que por desafeto
ao noivo, não quis ir ao casório. A cerimônia foi realizada com o
tio do primo do Zé fazendo as vezes de pai, e lá pelas tantas,
quando ninguém esperava mais surpresa alguma, barrigas satisfeitas,
aparece Zé com a viola!
O genro podia
ser tronxo, mas perder a festança da alegria do povo, enquanto
tocava? Ah!, isso nunca!
E Zé animou a
festa até as quatro da matina. Não falou com o - agora - genro, mas
cantou para a filha. E para todos os convivas que ali estavam. Foi
uma alegria só!
Dessa filha,
teve três netos. Um deles é doutor, os outros dois compraram um
armazém e “enricaram”, como diz o Zé. Não esquecem do avô, e no
último natal lhe deram uma viola nova de presente. O Zé aceitou de
bom grado, mas guarda o lustroso instrumento na saleta de sua casa
pra mostrar para as visitas.
Continua tocando
na velha, que já está puro traste os trastes, mas ele se vira, como
é de seu feitio.
Numa outra vez,
chamaram o Zé na cidade pra ele cantar no Grêmio Recreativo. Não
aceitou não! Disse que era coisa de gente “grã-fina”, e que os
sapatos estavam muito velhos para fazer o bonito que gostaria.
O neto doutor
lhe comprou sapatos novos, mas nem assim Zé foi ao tal Grêmio. Disse
que os sapatos lhe doíam os pés acostumados às chinelas de dedo.
Outro dia Zé me
disse, em bate-papo de cadeira em beira de porta, que seria ser
contador. Que se fosse letrado, ia contar sua estória pra todo
mundo, mas como não era, queria que eu contasse.
Prometi a ele
que o faria.
Me fez escrever
num papel e assinar, pois, segundo ele, o tempo de homens de palavra
já se foi há muito tempo.
E cá estou eu,
começando aquilo que prometi. Disse a ele que ia demorar pra colocar
tudo no papel, porque a vida dele era muito rica. Ele não concordou.
Ficou brabo! Disse que sempre teve vida pobre.
Tentei lhe
explicar o que queria dizer, mas ele não se fez de rogado: rasgou o
papel assinado, jogou fora o pito, pôs a viola nas costas e entrou
pra dentro de casa. E ainda por cima, me fechou a janela na cara.
Ana Peluso
2001
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