Anderson Braga Horta
Brinde
O sonho pode mais do que os sentidos.
A canção estrangeira que nos extasiava em nossa adolescência, de
nebuloso paraíso se transforma em desvendado continente, claro e
dominado quotidiano, ao lhe compreendermos as palavras. O que vemos,
o que tocamos, o que possuímos é finito, é findo. O que vislumbramos
esconde, nas franjas do mistério, um infinito de universos
eternos... O território entremostrado apenas, o que de uma
entrevista realidade se nos tolhe ao olhar guloso: aí nascem as
fontes esquivas que matariam nossa insaciável sede.
Que matariam — mas não matam! Pois é a
sede o que faz da água fresca e do vinho o hidromel dos homens... e
assim quiçá com o néctar dos deuses.
Esta verdade, que vou laboriosamente
redescobrindo e reconstruindo com os instrumentos da razão,
imemorialmente a afaga, colhida em sua rede de sedas e veludos e
arminhos, a nunca superestimada argúcia feminina. É em obediência a
essa lei, e por cultivado instinto, feito arma invisível a nos
manter docemente subjugados, que a mulher nunca se entrega de todo:
tem sempre um negaça, uma fosquinha, uma esquivança, que é o
prolongamento do sim, sem o acabar. E ai das que o esquecem!
É esta a razão, também, de verem os
sábios o olho-d'água da poesia antes no que o poema sugere, no que
deixa imaginar, do que nas apóstrofes, nos silogismos ou nos
mármores em que se disfarce. Porque nada que possamos inteiramente
ver, ouvir, tocar pode chegar aos pés do idealizado.
Por isto sonhamos: para pairar acima
do que somos. Diria: acima do que pode existir, já não o houvesse
expressado, em altaneira linguagem, o soneto maravilhoso de Waldemar
Lopes:¹
Soneto dos símbolos efêmeros
Os símbolos efêmeros: memento
da vida breve: música secreta
— do tempo, a se esvair na asa do vento,
— do sonho, a esmaecer a chama inquieta.
Cresça no céu de pedra o véu nevoento;
junto à nuvens se perca a doida seta
rumo ao não e ao talvez: o sentimento
atrela-se a uma estrela, e essa incompleta
visão apaziguante é misteriosa
luz transcendência: rútila persiste,
seiva do ser, essência poderosa,
pois se foi dito o quanto a carne é triste,
arde em perfume o espírito da rosa
e é mais belo o que só no sonho existe.
Por isto bebemos: para sonhar. E se já
não sabemos embriagar-nos de música, de amores... ai de nós! caímos
à cata de outros álcoois.
Enchamos nossa taça de poesia.
1. De Os Pássaros da Noite, in: Memória do Tempo — Padrão Livraria
Ed., Rio de Janeiro, 1981; p. 78.
Anderson Braga Horta
Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília
Thesaurus, Brasília, 2003
Leia Waldemar
Lopes
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