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Jornal do Conto

 

 

Andréa Santos


 


Terminar com você



 

 

“Aquí no pasa nada,
salvo el tiempo:
Irrepetible
Música que resuena,
ya extinguida,
en un corazón hueco, abandonado,
que alguien toma un momento,
escucha
y tira”.

Ángel Gonzalez - Elegía pura


 

Em conversa com o vizinho, vi uma moça passar chorando. Perguntei ao meu ouvinte, quem era? Falou-me ser a moça do 304. Naquele momento imaginei vários motivos para aquele choro. A cabeça foi a mil e as idéias fluíam como uma imaginação de menino.

Na minha idade já vi muitas moças chorando. Nunca as fiz chorar! Este universo do choro feminino é algo engrandecedor aos homens de sabedoria. Se nós soubermos acolher cada lágrima, seremos o néctar mais valioso na hora da colheita!

E assim fui à porta do 304, colher meu deleite. Na minha surpresa a ela, existia mais uma lágrima. Naquele pranto havia um relato de um fato concreto na cor mais opaca aos apaixonados. Perguntei se poderia entrar, sem muita hesitação, fui um convidado esperado.

Sua sala era um brandy com bastante gelo. Nas cadeiras estava o que eu chamaria: louvor a Simone de Beauvoir sem Jean Paul Sartre. Mas adentrei, ainda, quero meu prazer nas palavras femininas. Dei a ela um lenço de família, enxugou as lágrimas e sem pronunciar a saliva acumulada na minha boca, escutei as referências lupanares de sua vida. Não imaginaria que minha vizinha do 304 era lupaneira. Faz-me pensar em tantas coisas neste universo!

Via em minha frente uma borboleta que por pouco cai morta. Seu corpo se contorce e suas anteninhas da cabeça estão desorientadas. E eu ali, com a palma da mão para sustentá-la.

Era quase tarde e esta infeliz em segundos passados, terminaria com ela.

A noite estava bonita, convidava para as borboletices desta mulher. — As minhas noites são sempre azuladas! – dizia-me. Ela supunha que não teria visto e não sabia das curvas de seu corpo, que ela se movia como uma panapaña nestes corredores, e eu era atraído. Não era incitado com um amor, mais chamado pelo seu silêncio e pela leveza de seus saltos. —Você nunca se ofendeu e dava-me boa noite, ainda. Confesso-me.

Qualquer coisa pronunciada seria um aprendizado para este homem. Ele que mudara de profissão e passara a ser um ouvinte feminino. Com seus óculos pendurados como um adorno, escutava as confissões sem interrupções.

Ela contava-me que há trinta dias conhecera seu amor -pensava pelo menos! Homem de princípios (e você imagine um ser de princípios freqüentando bordeis), educado, quase loiro, de estatura do bom abraço na vertical. Tudo na positividade de um príncipe. Visitara-a sempre nas sextas, dia das amantes, e nas segundas quase sempre. Levava esta mulher às alegrias e aos sorrisos invejáveis. Mas como nada é perfeito, ele é esposado. Pobre bela, na sua imaginação havia até o: —boa noite, meu amor!

Naquela tarde de quarta-feira, Roberto, não costumava ir aquele local. Procurou-a e confessou: —Marajac, eu te amo! Entretanto, tenho mulher, filhos e uma sociedade para fiscalizar minhas condutas de homem de bem. Não virei ver-te mais. Deixo algo para ajudá-la e adeus. Ele partiu como uma personagem de romance mexicano ou bíblico: — não olhes para trás...

Marajac, como toda mulher e ainda lupaneira, tem o desejo de ver-se na condição de esposa preparando o café para o marido. Afinal, já estava quase aos trinta e oito e a vida de borboleta não lhe rendia mais o de outrora. Desejava trabalhar em outras coisas, mas não tinha estudo completo, mal sabia as quatro operações.

Neste tempo de ‘60, elas deviam estar casadas nesta idade. Caso não, poderia restar o nada ou aquele solteirão (mas fantasie este solteirão): —funcionário público e compromissado com o trabalho até o pescoço. Esperando chegar em casa e encontrar aquela comidinha e a mulherzinha quentes por ele. A primeira bem mais quente que a segunda. Ele não teria a condição de perceber o novo penteado nem tão pouco a nova roupa, tudo realizado para ele. E nada de amor!

Deves dizer que o sujeito de princípios fora uma personagem de Nelson Rodrigues ou de qualquer outro escritor e dir-te-ei: —Não! Este Roberto é encontrado por ti nas ruas e nem se quer podes sentir o cheiro da canalhice passada por ele. Pois, este pode ser o teu esposo, teu noivo ou namorado.

Marajac desolada da sua fantasia, sabia a dificuldade da vida com as mulheres de Balzac. Dizia para si: —Devias ter estudado, namorado o coleguinha do colegial e com ele subido ao altar sendo abençoada por Santa Terezinha para serem felizes na eternidade.

Marcelo escutara tudo exposto aqui e mais um pouco (mas deixo-te curioso ou trabalhando as idéias) e não salivava nada. O brandy daquela sala, as cruzadas de pernas dela e suas baforadas na piteira o deixavam tonto. Estava ele embebecido como na contemplação da Venere d’Urbini de Tiziano ou Veneri, satírico e amorini de Carracci. Nos três quadros há sensualidades, deusas: um traz o toque vermelho ao canto e a confirmação da sensualidade na mulher pós-banho. O outro, o conjunto de semideusas no colorido harmonioso maneirista.

O terceiro, a desnudez de sua Marajac a Marcelo... As três Déas de pele aveludada.
Calou-se, expulsou-se de Marajac sem pronunciar conselhos e saiu extasiado com tudo. Mas dali, ele exasperou tanto que se transformara dolorido a si próprio, fora um objeto do choro daquela situação que de algum modo amou. Não amava somente ali, mas a mulher, as noites brilhantes, amava-a como o coleguinha da escola que havia tentado o casamento desesperadamente com ela para se proteger do óbvio.

Entretanto, saía com a cólera de quem ainda ia ser covarde, veria o homem de ombros maduros, fortes e curvos. Seus óculos não eram significados de tempos, era claro a dificuldade de enxergar às suas falhas e aos seus vazios. Nunca fizera uma mulher chorar por ele!

O que devo dizer de alguém que não era a lagrima caída dela? Seria uma minhoca, um gavião ou simplesmente um felizardo? As apostas foram lançadas e ainda não escutei teu lance!

Parecia que nada acontecia àquele coração, nem nas noites lunares. Cruzava olhares nela e somente. Um indivíduo, como Marcelo, não tinha super poderes e poderia acabar com a fome, a miséria e as injustiças de um lar. Poderia saciar os anseios da panapanã. No entanto, ele não faz nada disso. Ao contrário, o bem que pratica é a caridade e o mal que combate é o atentado à propriedade privada.

—Lutar contra o mal é combater as ilusões ou ladrões?

—Ele dedicou-se a isto?!

Marcelo de Alcântara Cossovar era um funcionário público, acima de tudo, o Alcântara. Com este último procurava se desfazer da roupagem antiga do serviço e abandonar a polidez forçada dos anos de funcionalismo. Tão inconsistente com a sua colocação de homem livre que se transformou em uma relíquia para alguns cavalheiros. Sabemos que a velha forma de tratar desapareceu, devemos até esquecê-las. As maneiras simples e naturais devem substituir a dignidade superficial que constituía diariamente a única qualidade dos homens de poder. Entretanto, restavam a decência e a genuína austeridade, elas são os requisitos básicos exigidos a estes homens.

O Alcântara abria a porta de seu apartamento: ele não era bebida, era labirinto de sentimentos estúpidos (sentimentos opacos sem canção, sem ação). O apartamento era situado ao fim do corredor, ali, Marcelo não escutava o mar nem o vento tocando na sua face. Ele via a lua porque seu vizinho não pôs o velho toldo armado acima. Com a cabeça baixa, ascendeu à luz branca e com o braço estendido ligou a música. Junto ao estilo silencioso - que adotou depois da aposentadoria - teve uma atitude natural em relação ao choro de Marajac. Não mentalizava e tão pouco salivava as frases convencionais, nem desperdiçou as palavras, mas lamentou: —nunca fiz uma mulher chorar!

 

 

 


 

14/07/2005