Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

Andréa Santos


 


A Boca Fascinante




 

“Portanto, se há algum conforto em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão no Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões. Completai o meu gozo, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa”.

Epístola de São Paulo aos Filipenses – Cap.2 vers. 1 e 2.

 


A Carlos Fernando


 

Certa manhã, assistindo o programa da Tv Cullinária [o qual ainda não sei se é instrutivo ou consumista; mas tenho a ciência: pega nacionalmente!], vi uma receita que muito me chamou atenção, já que não sou uma quituteira a bolos. Ela, a receita, não leva o cimento das massas - a velha farinha de trigo-, mas recebe o nome carinhoso de Bolo da vovó. Pergunto: —Por que será?

Dois anos se passou e como não convivo com a vovó precisei ter essa resposta, neste Natal de 1993.

Nossa pequena história começa com esta família de seis habitantes e não excluo meus bichinhos de estimação!

Chamo-me Letícia. E meus irmãos são Baladitya e Adriano - ela não nos habita, nos visita. Ele também nos visita nas horas de descanso. Lógico..., não esqueceria da mamãe querida –Nadia- que ora varia em personagem de fábula, ora é bem real. Entretanto, não posso esquecer da Blimunda e Doninha, são as cadelinhas cuja alegria complementa esta família bem típica diariamente, neste país onde tudo parece correr as mil maravilhas.

Meu nome sempre me agrada, porque também agradava ao papai e tem vários significados. Além do mais, ele dizia que era o nome de alguma imperatriz [bem... nos meus anos de estudo não ouvi esta história. Porém, gostava de imaginar-me como imperatriz]. Para mim, pouco importava que fosse mentira.

Dizia-me o papai: —não se deve mentir a quem se quer o bem!

Ele não era inflexível de jeito algum. Pelo contrário, aquele impulso de mergulhar de cabeça nos vazios existenciais que descobria sempre nos ensinava:

—Não há nada que vale a pena, se a gente tenta levar as coisas a sério. Perceba que nunca são como gostaríamos que fossem. Este foi um dos ensinamentos ministrado por ele!

Aquele impulso dele era fruto da bondade, ligado ao desejo de que a vida transcorresse com benevolência e gentileza e fosse benéfica a todos os outros. No meio de tantas conversas, ficávamos sabendo que Tyan Ferreiro - nome de batismo do papai- ficara órfão de pai e logo depois de mãe e não possuíra irmãos. Desta maneira, eu imaginava que a sua tristeza fosse um desejo de amor e de alegria à vida, à graça. Tyan possuía a natureza de amante, disposto a toda hora a dar, sem muito receber, sempre confiante. Por isto, eu não conseguia acreditar que se tornara naquele 13 de junho de 1990, uma flor naquele jardim de lápides.

Meu irmão me dissera uma vez: — como é que podes lembrar de quando eras tão pequenina. Ninguém se lembra dos tempos quando ainda não se fala!

Falava-me assim porque recordo com precisão de todos os sucos e paladares particulares. A saliva tem um sabor singular. A fome que eu possuía do peito da mamãe também. Não posso esquecer dos sons do meu próprio choro, dos ecos, dos berros. Descobri ainda menina que mercadoria efêmera é o amor, exceto o materno.

Na nossa criação, aprendemos muita coisa importante, mas – hoje- acho que mais importante é o saber respeitar a opinião alheia; mesmo que esta caminhe sempre para a via do sem fim. Mamãe sempre nos deu uma certa liberdade de escolha, ela não se parece nada com Marina.

Sei que o vovô morreu. Não lembro dele doente, só da anunciação dela, a morte.

Presumo que estava numa sala deitado no catafalco. Ele era alto e parecia ser exigente com todos. Lá naquela sala, estavam os irmãos de mamãe - de preto- ao lado da vovó Marina. Em pé, vagavam os outros pela sala. Iam ver o bigode dele, pálido e cinzento como seu rosto.

Fazia sol naquela manhã. Os aromas de eucaliptos e dos pinheiros deixavam todos alegres, não havia como se ter tristeza com o sol de janeiro. Na verdade, existia felicidade, com a fragrância que vinha do suco de cajá e do café batido na hora, para os mais velhos.

Mais forte do que todo o aroma, foi à beleza do dia, a luminosidade dourada, os perfumes marcantes e a excitação que crescia com os murmúrios de vozes a consolar a mamãe, afinal estávamos tão longe da casa.

Não contive a risada... Não sabia enxergar aquele corpo inerte e tudo aquilo como despedida!

—Eu já tinha sido feliz? Estacionada na realidade que me circundava, tentei fantasiar, fugir. Eu não era uma menina boa!

Nadia é seu nome, mas não se acarinhava com ele. Ela não se assemelha à mulher de Vladimir Ilitch Ulianov - dito Lênin. Também nem gostava do comunismo, mas admirava a Literatura Russa. No passado, mamãe sempre repetia quando eu tentava interromper sua leitura:

—Poderás lê-la sozinha, quando cresceres. Por enquanto, ainda, é muito difícil para ti.
Contudo, curiosa com a leitura dela, passava horas imaginando o que tinha naquelas linhas. Principalmente na aula de geografia e história: mapas e czares! Era tudo muito vasto para mim. Uma fatia imensa a decorar, entretanto conseguia apenas fixar meus olhos e logo depois o pensamento no azul do mar – mas que de azul não tinha nada, era mesmo o Mar Negro. Nadia queria ser chamada de Grazie. Nome cuja harmonização seria perfeita aos seus cachos. Na minha opinião, era um nome muito feio, apesar de significar educação nas bocas falantes. Mas à mamãe agradava.

É Natal de 1993, há quase dois anos não vemos a querida vovó. Ela nos chega encoberta de agrados letais. Em meio ao tumulto de perguntas, não ouso indagar-lhe nada. Contudo, não compreendia... o porquê de minha face avermelhar-se aos poucos.

Marina Isola é a vovó, um vale quente e apertado, em ocasiões sorridente outras sombria, conforme o sol do coração brilhasse ou estivesse eclipsado. Eu a conheci pela pintura suspensa na sala de estar, há oito anos atrás. Mas aquela tela não se revelava grande obra, era o reflexo de um amor infeliz, de um pintor de brocha gorda não correspondido. Ela permanecia altiva, majestosa, a transparecer uma dignidade solitária.

Depois da morte do vovô Ângelo, estava ruiva – uma verdadeira flama. E, ainda, nas suas chamas capilares, o ninho de sua história com ele se queimando. Uma a uma, as flamas estão desertando o seu pensamento, como um atol misterioso e imerso.

Sem nada lhe indagar , tinha palavras dirigidas a mim:

—Não te trouxe nada de muito especial, Letícia. Porém há estes pufes que podem te servir e assim ficamos para a próxima vinda. E com um sinal de surpresa, sussurra: —Tu sabes que a vovó veio aqui te ensinar algumas coisas...Coisas Divinas?

Estranho, pois, não costumava contar histórias, nem se dava a brincadeiras fúteis: tudo para ela era pura realidade.

—Não...!!!

Em minha inocência de criança, era só isto que podia responder, e completei a frase:

— Não, pois pensei que além do aprendido em catecismo, Jesus nos ensinasse também no dia-a –dia. Assim nos mostrou a mamãe!

Claramente, Tyan Ferreiro e Nadia não nos atormentavam com a recusa de não sermos muitos religiosos. Tyan não era religioso. Mas me mostrava que aquela dor sentida a religião quiçá poderia aliviar porque era um padecimento de coisas eternas, de insatisfação, e no mais, tudo se acaba um dia. Nadia vivia na clandestinidade. Enfática, ela sentia a verdade nas coisas, fazia-nos parar, intransigente para respeitar a Deus e as coisas dele. Nadia era singularmente mais forte que o Tyan.

E Isola continua: — A palavra está comigo e eu sei a verdade!

Meus pais diziam que ninguém é dono da verdade. Por que a vovó é a dona? Será que é tão rica para comprá-la? E a verdade se compra?

Marina me olhava séria, eu a compreendia pelos meus ensinamentos. Entretanto, não gostava do que dizia, sinto violência contra a minha vida. Parecia não querer bem. Penso olhando para seus olhos: —além de só, ela não ama e nem é amada. Mas no fundo- nós, os homens, podemos fazer tudo o que queremos, não é verdade? A liberdade pode ser dupla, ambígua e nos precipitar em movimentos inconcludentes, e desejos, e imaginações que terminam por entalar-se na hesitação, na incerteza. Será que a vovó Marina Isola sabia dessas coisas?

Os dias se passaram, entretanto, eu observava Marina sempre inquieta para ver o mundo e também para baixar a barriga. Sabias que a vovó tem a barriga de uma mulher grávida? Decidi, então, ir passear com ela. Mas nem um doce eu ganhei nos passeios...

—Sei papai do céu, sou criança e não posso cobiçar o alheio, mas só um docinho ou um pirulito...- sussurrei ao léu na esperança de ser atendida.

Quando chegávamos em casa, ela sempre dizia:

—Preciso baixar a barriga.

Então perguntei:

—Como vovó? Pois também quero!

Disse-me: —dar-te-ei a receita, mas traga lápis e papel e sente-se aqui. E começou a ditar:

—À hora das refeições, devemos nos alimentar azafamando rapidamente, assim o coração bate mais forte e os olhos acompanham os farelos que correm pela boca. Ainda, devemos nos prender a sensação produzida pelo estomago, a curiosidade das garfadas.

Pronto é isto!

Sem interromper seu discurso, escutava-a ainda, sem retrucar.

—Igualmente, não podes esquecer das grandes festividades, das ceias. Elas são as mais importantes neste round a não pregar os sete pecados capitais.

Agora, eu retruco : —Sim, vovó, mas a sua receita é a inversão dos ensinamentos da mamãe e principalmente dos ensinamentos do catecismo. Pois –lá- eu aprendi tudo ao contrário. Eu não vou perder barriga assim, na verdade, vou ganhar piedade das pessoas, vovó. Penso que tudo isto que me falas é piada. Penso, então, ser por isto que o bolo da televisão chama-se bolo da vovó. Todos os outros ingredientes para completá-lo, você, Isola já os teria comido, pensando ser farinha bem triturada.

E, desta maneira, descobri porque aquele bolo tão bonito tem o seu nome, além do que papai do céu sempre manda as coisas mais gostosas nas embalagens simplificadas. Como esta mistura de ovos e chocolate (somente). A apresentadora do programa tem avó com certeza!

Relembro todas essas coisas, por que a dor em uma garotinha pode nascer a qualquer instante. Noto que o meu sofrimento começou quando a vi enquadrada na sala de estar. Não saberia ela que estaria, hoje, doente por não gostar de comer. Depois daquela conversa, passei a não ter gosto pelo alimento. Tenho até câimbras, mas continuo a sentir aqueles paladares singulares de anos atrás - estes não me tirara. Emagreci muito. Pensam até na morte. Mas, ainda estou forte.

Logo depois de quatro anos, a minha ilha inapetente terminou, sai do isolamento, não padeço mais daquele ódio pela vovó – cobaia do reflexo do amante infeliz.

Vejo esplendor, após o crepúsculo, da janela do meu quarto. E Blimunda e Doninha correndo sob aquele sol escaldante. Mamãe me espera para o piquenique e eu pelos carinhos dela. Mas, ao olhar aquele resplendor, eu recordo da pergunta que me fizera quando ri pela última vez:

—Eu já tinha sido feliz?

—Sim, eu sou F-E- L- I- Z! Porque não deixei a morte se aproximar de mim pela minha inapetência. A minha letra e a minha vida são recordações mutiladas, páginas de minha existência que, hoje, revejo neste diário.

Lembra-se de Grazie? É o nome mais repetido em minha boca. É fascinante, encolher-me novamente –nas manhãs - para sentir a vida lá dentro de mim. É uma solidão sedutora, não havia a morte, mas uma existência defendida. Amava o papai e amo a mamãe que me causaram a vida.

Preciso correr para os braços da mamãe!

 

 

 


 

14/07/2005