Antero Barbosa
Incesto
Segura-me a meu mundo, em particular
com três braços, o homem com quem casei. A paixão aberta e rebelde,
hoje nostálgica, que nasceu na queima das fitas, a filha que a meias
demos e damos à vida, e o salário (alto) que me permite fruir todas
as extravagâncias, algumas contra ele, que são o aconchego de meu
destino.
Sou grata e leal, mas há um fogo
interior a que debalde tento resistir, sofrida, dobrada, partida. É
o fogo da paixão, de outras paixões, o gosto por outros,
afeiçoamento físico ou mental, condição nua de mulher plena. Porque
a árvore do amor não tem que ter um só ramo. É ridículo. Oponho,
quase sempre, minha racionalidade, minha objectividade, deito mão da
ironia, sujo-me em querelas, atasco-me, escorraço. Mero instinto de
defesa.
Mas, casos há esporádicos, em que eles
são hábeis e usam sua lupa profunda. Aproveitando-se de conjunturas,
de monotonias. Abrem meu cérebro, fico transparente, se a ocasião
surgir fácil se torna afastar minhas pernas em direcção oposta.
Então evito a ocasião, evito que ela encontre sua realidade,
esquivo-me, afasto-me, entrego-me a outros interesses. Inventando a
convicção.
O penúltimo caso foi um pouco assim.
Ele era feio e mal constituído, mas detinha uma mente sobrenatural.
E nosso enleio cresceu na escuridão das noites avermelhadas por
discotecas. De tal forma que os últimos abraços de dança já
soerguiam meus tacões do chão. Deixando de sentir os pés. Um dia ele
experimentou o veneno da ausência, talvez por se sentir dono e
seguro, e no final endereçou frases que me conflituaram. Agarrei-me
a elas para me desprender dele. Elas, para mim, eram ele. Ele
afundou-se com elas.
Com o último, o italiano, a história
foi diferente. Encontro virtual de net, minha vivência e gosto
sicilianos encastoaram chocolate em nossa correspondência,
encontrámo-nos. Sempre garanti aos íntimos que era uma relação
cordial, intelectual, mundana até. Mas amorosa nunca.
Sem motivo, ele ficou embruxado.
Cosmopolita, advogado, experto, lançou todos seus cães contra mim.
Era um granizo de telefonemas, todo o dia, mails, declarações. As
conversas eram longas e impertinentes, tipo cola, obrigavam-me a
fugir do gabinete, do quarto, do restaurante. Os sapatos que gastei
com sua voz! Com todos os riscos inerentes.
De vez em quando eu abordava a
Sicília. E ele me acompanhava, me integrava, me empurrava, quase
platónico. Um olhar de cão triste sobre mim toda. Que me perturbava
o aborrecimento. Vocês não imaginam: um colar de calores naquela
região, o clima, os olhos dos homens que nos despiam, o dele como um
relâmpago, a noite como um vestido.
Pior ainda foi quando ele apareceu cá
de hotel posto. Agarrou-se a mim quase implorando, de águas nadando
na íris, e eu dei, quase caritativa, troco a compensações vagas e
indefinidas. Entregando-lhe algo de mim, não eu. Como um empréstimo.
Sabendo perfeitamente da diferença entre o que se dá e o que se
recebe.
Óbvio que as cenas seguintes são
fáceis de decifrar. Em tudo o hábito avança limando. Completando
esboços. E o italiano fez cristalizar suas faculdades: de
empresário, de intelectual, de sexista sobretudo. Apesar de meus
múltiplos sulcos gravados em sangue, ele me arpoou como se virgem
fosse. O que me adentrou de espanto e prazer. Inconfessáveis.
Ousei dar corpo à preservação da
família. O seu sentido nodal. Fugi, neguei-me. Ora! O sofrimento foi
duro. Estava acostumada a ver o passarinho cantar todos os dias em
minha janela. Sobre o ramo esverdeado do limoeiro. Olhar a janela,
aberta ou de vidro, e não o ver, criou-me desatino. Mas aguentei.
Aguentei-me. E aguentaria. Como noutras situações.
Mas ele foi tubarão. Rompeu todos os
oceanos. Os meus que amava. Apareceu. Agarrou-se a mim que já estava
a ele agarrada. Entreguei os pontos. Aqui estamos sobre o mundo. Que
ele criou. Com meus cabelos. Que me permitem fluir imersa.
Agora dormimos em quartos separados.
Eu e meu marido. Já antes isso acontecia de forma mais ou menos
acordada. Como disse, ele tem três braços com que me segura. Vidas
independentes, sim, e isso nos liberta a ambos retornando-nos ao
celibato.
Não sei se tem qualquer relação com
outra mulher. Ou com outras. Nem quero saber. Mas gostaria que
tivesse. Imagino que de mim nada sabe. Ou desconfia. Porque nunca mo
deu a perceber, sempre usei carta de alforria que não teve dúvidas
em subscrever. Voluntária ou inconscientemente. Gosta de mim. Muito.
Como sempre, desde a primeira hora. Eu gosto dele. Muito. Como um
irmão.
Porque dez anos de casamento, além de
enquistar o desgaste esfaqueiam o desejo. De forma definitiva. E
absoluta. E não sabemos onde se meteu, talvez soterrada, a louca
sensação que resultava do choque de nossos corpos. Do simples
encostar.
Quando me procurava, já na era
italiana, eu sentia-me objecto de violação. Pura. Colocada abaixo da
indiferença inerte de qualquer prostituta.
Agora, nas raras vezes que me
solicita, porque eu já não o faço, dá-se o incesto. É um irmão com
pénis, meu rosto se encosta sem vontade e com enjoo. Sou alvo. Das
crispações contraditórias, doridas, que faz desabar sobre mim todo o
proibido não.
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