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Jornal do Conto

 

 

Antero Barbosa


 


Sally's deaths



 

 

A morte de Sally aconteceu na escola primária. Primeiramente. Oficialmente. Não, não foi bem assim, a filha, Lily, teve conhecimento, esse, na escola. Foi atropelada pela notícia. A despeito de todos os jeitos, puxada a professora de lado, com segredos na orelha, mas tratou-se de atropelamento. Fatal em tal idade.

Aliás, nem foi na escola primária. Aí apenas lhe disseram que a mãe, Sally, estava mal. Pelo caminho piorou, ficou muito mal. Ao chegar ao hospital não havia resistido, estava morta. Não, não estava, parecia dormir deitada de pálpebras encerradas. Mas, estranhamente, dormia com muita gente em redor. Vizinhos e estranhos. Depois é que lhe deram aquela cristã explicação de havia sido chamada por Deus ou para Deus, não percebeu, nada percebia. E só mais tarde, meses, é que a tia com quem foi viver lhe disse que Sally tinha morrido atropelada.

Fixemo-nos então nesta morte, a oficial. A que criou uma fractura, que estabeleceu uma fronteira em sua vida, em suas vidas. A dela, a da mãe, as dela. Morte que suprimia o beijo da manhã. E os carinhos e os cuidados dispostos para a ida à escola. E o reencontro ao fim de tarde, de abraços muito mútuos acesos de morno calor. E o beijinho nocturno com que adormecia docemente.

Mas a relação com os tios degradou-se. E um dia inóspito Sally, a mãe, tornou-se prostituta, ou puta mesmo. Assim de repente, sem mais nem menos, durante um ataque de fúria da tia. Observado cabisbaixo pelo tio. Bem se pode dizer que esta biografia flui ao contrário. De um passado para outro e outro cada vez mais remotos. Claro que Lily trabalhara na direcção desta verdade, com seu radicalismo, suas posições vexantes na igreja, seu afrontamento noutros locais públicos. Atitudes viris. Que por vezes arrancam a verdade de suas sujas tocas. Então a morte passou a ser de overdose. Lily não entendeu mais uma vez. Apesar de sua perspicácia que ninguém podia recusar, nem a tia. Mas quando entendeu entendeu que poderia manter a causa de atropelamento. Por overdose.

Sally morria segunda vez ou uma segunda morte. A pior das mortes. Que fazer com a primeira? E afinal, entrava na prostituição quando isso já era impossível. Por estendida e morta e gelada no cemitério. A prostituição e a morte, por impossíveis em Sally, transferiam-se agora para a cabeça de Lily. Não havia outro terreno para elas. À noite e não só, nos recônditos do colégio, sua mente debatia-se com essa nova morte. E acompanha a mãe aos encontros de esquina e aos quartos de pensão onde se rasgam as pernas de mulher. Como Sally.

Sally vivia agora na cabeça de Lily. Era lá que se alimentava e ganhava raízes. Era necessário, isso sim, que ela morresse. Mas não, vivia ali com suas mortes. Afinal, não tinha sido overdose, contou-lhe uma amiga. Lily já tinha percebido que não. Sabia e conhecia a fundo os hábitos dos toxicodependentes e nunca surpreendera esses indícios na mãe. Orgia lhe chamou a amiga. Álcool, muito, envolvido com homens, briga de fim de jantar, navalhas que se enterram no suor das axilas ou tiros que acertam por acaso no temporal. Lily, que dava seu leite à mãe, Sally, teve que se adaptar a mais esta morte.

Farta do assunto, resolveu criar uma morte decente. À altura da mãe que fora a melhor do mundo. Então, se a encontrou no hospital, tudo se explicava. Fora uma doença súbita, um aneurisma que rebenta, uma síncope, um apêndice mal operado. Está sempre a acontecer. Só desta forma Sally poderia voltar a ser a mãe e cerrar as pálpebras para poder morrer.

Mas as coisas não são tão simples assim. Rompendo com os tios e regressando próxima do antigo lar por conjugação de um emprego, leu novas e indecentes mortes nos rostos das pessoas que a olhavam. Cada olhar reflectia uma morte diferente. E nenhum dos seus esforços, acamaradando no café, frequência dissimulada da religião catalítica, aquisição de namorado ainda que não esbelto – nada lhe solucionou o que quer que seja.

Cedeu às falsas pressões dos tios e voltou a eles e ao colégio de freiras. Uma frialdade imensa escorria do rosto das professas, cuja função deveria consistir em acolher e acarinhar. Pior, suas palavras eram ásperas, amargas, ainda que indirectamente remetiam direito para Sally. Já conhecida em todos os lados que Lily pisava. Que a ela se colava como uma sombra.

Não conseguia libertar-se daquelas mortes. Não podia. Não reussia. Parecia inútil. De uma das vezes que olhava o rio, perto da ponte, com as luzes da noite revoltas em burburinho nas águas, teve uma ideia. Feliz. Apagar aquela morte, todas as mortes que carregava em suas costas. Afogar a pessoa que a não largava, que morta vivia por ela. Afogar. Não esperou para reflectir, arremessou-se bruscamente nas águas negras.

 

 

 

 

01/11/2005