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Antero Barbosa


 


No outro lado
 



 

É natural que quando se apresenta um livro de poemas, ou se aborde o tema da poesia, se levante a questão da definição do tema. Porém, rogo que não me obriguem a tal exercício, pois perigosa seria para mim a aventura de que os meus amigos se tornariam os tranquilos espectadores e nem sei sequer se alguma coisa aproveitariam com isso.

Para ficarem com uma pequena ideia do que poderia então ocorrer, recorro a um poeta romântico espanhol, muito do meu gosto, Gustavo Adolfo Bécquer, que nos diz num seu poema:

Que é poesia? Perguntas enquanto cravas
na minha pupila a tua pupila azul.
Que é poesia? Tu perguntas-me?
Poesia… és tu.

 

Naturalmente, aperceberam-se da habilidade dialéctica, mesmo da agilidade poética, do escritor em despachar quem lhe fazia tal pergunta com uma resposta evasiva! Em prosa, talvez não se tornasse mais fácil a resposta, dadas as circunstâncias. E então seria assim: “poesia é a expressão literária da beleza, dos sentimentos, das ideias e das emoções”.

Outra de tantas acepções praticáveis seria ainda: “poesia é um conjunto de versos ou poema de pouca extensão”. Já o poeta, esse é aquele que escreve poesia.

Os versos são geralmente ideias curtas expressas numa só linha, que se vão relacionando com o resto da estrofe.

Todavia, há uma questão que se pode pôr interrogativamente com bastante manha. E quem faz a pergunta é o Sr. Gaston Bachelard. E deste modo: “Que é um belo poema senão uma loucura encarada sob um outro aspecto menos clínico e mais criativo?” (de passagem lembraria exemplos muito directos como Ângelo de Lima e António Gancho, este falecido o outro dia num hospital psiquiátrico). Mas não sei se é isto que interessa realmente para aqui. O curioso é que estamos reunidos a pretexto do lançamento de um livro que hoje é publicamente apresentado, livro este cuja expressão constitutiva da chancela editorial se confunde com a própria temática da obra, Ausência Quebrada. E o livro chama-se, ou melhor: intitula-se, um tanto enigmaticamente, convenhamos, RAMO E DE REPENTE, sendo seu autor Antero Barbosa. Trata-se de uma estreia nos domínios da poética lírica, onde o olhar percorre silenciosamente os corredores de um edifício unipessoal mesclando a memória, despindo-se de emoções, retomando a cada instante um distanciamento em relação às circunstâncias motivadoras de cada poema ou texto poético.

Este livro tem a particularidade de não se recolher à tutela de qualquer epígrafe indicativa, de qualquer sugestão de caminho pré-determinado. Apenas sabemos, aliás de um modo um tanto doloroso, de um doloroso forjado em palavras despojadas de alguma ganga, às vezes mesmo excessivamente despojadas da tal ganga mais xis, que

no outro lado
francamente
é lá que tudo acontece

Mas no outro lado de quê?
Da realidade, aceitemos, mas da realidade de quê?
Da poesia?
Do universo mais prosaico, da empatia das gentes?

 

A verdade é que nos vimos confrontados com universos fantásticos tripuladospor bruxas equestres, vivas e mortas, e num instante sentimos a envolvência quase erótica em que o protagonista sente quanto

são quentes as mãos
do barbeiro

 

Ao mesmo tempo que completa o fenômeno indicando que as pombas regressam e perpetuam-se na moldura de asas e cabelos e repouso. Bem diz Antero Barbosa que isto se passa

por força de confluências
lógicas

Porque, insisto, em boa verdade,

na memória a lama
continua lá

 

A palavra poesia tem sido empregue ininterruptamente desde que os gregos a passaram a utilizar significando para eles como “criação”. Criação no sentido de plasmar imaginativamente a linguagem e na invenção de fábulas e mitos em contraste com a história, que é um registro de acontecimentos reais.

Por sua vez, Aristóteles considerava a poesia o que hoje chamaríamos “literatura de ficção”, abarcando nela a narrativa novelesca e o próprio drama. A poesia tinha uma particularidade pelo seu emprego de uma linguagem que se encontrava sujeita a certas normas de musicalidade ou de regularidade rítmica que hoje chamamos verso.

Naturalmente, de versos se fazem os poemas de Antero Barbosa. De um poeta que se estreia em livro individual depois dos 40 anos e com formação clássica é exigível uma maturidade evidente. Porém, as páginas desta obra, tematicamente ligadas a certos caminhos da memória e da observação de certos recantos do quotidiano.

Numa altura em que os cânones dos géneros já deram o que tinham a dar, surge-nos a aventura lírica de Antero Barbosa, renunciando a processos clássicos da crónica, sem pôr de lado a clássica poética, operando um livro que tem muito de original como proposta literária e deixando apetecer a obra seguinte, a consolidação do muito que aqui está prometido.

Aguardemos. E que Antero Barbosa não desmereça.


Texto de apresentação do livro de poemas «Ramo e de repente» por José Viale Moutinho
 

 

 


 

31/03/2006