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			Antero Barbosa 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
            "Campo de Trigo com Corvos", 
			Contos: Alguns símbolos da perplexidade 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
			 
			“O vôo rasante dos corvos 
			debicando/Não as espigas 
			maduras/Mas os olhos ...” 
			-Jorge Sousa Braga, in  
			“O Lírio que há no Delírio”  
			 
			O título, sumamente concreto e substantivo, impele ostensivamente 
			para zonas sensoriais e pictóricas. No entanto, “Campo de Trigo com 
			Corvos” não é mera reprodução do quadro de Van Gogh onde o trigo, 
			amarelo, eivado das chamas loucas do pintor, escorraça de seu seio o 
			bando negro dos corvos. Aqui, no livro, muito para além dos 
			afugentados, corvos há que permanecem pairantes ou, mais ainda, 
			baixando ao rés do solo jogam-se contra as pessoas provocando a 
			clivagem (ou a carnagem). E esta fórmula aproxima os textos de uma 
			realidade mais humana, ainda que desumana em função de traumatismos 
			de que se tece a evolução vital e biológica. Mas, na arte de contar 
			estórias, e é um pouco do que se trata aqui, o texto recorre 
			globalmente a técnicas específicas da pintura. Designadamente, dos 
			seguintes modos: Os fatos sucedem-se em tom linear, contíguos ou 
			adjacentes, em direção a um desfecho, previsível ou não, podendo-nos 
			apropriar neste caso da imagem do rio que decorre e atravessa a 
			paisagem rumo à foz. A disposição da narrativa procede à colocação 
			ou disposição de cenas paralelas, quadros que se encostam na 
			vertical, ou na horizontal, às vezes na diagonal. Lembrando um pouco 
			os vitrais medievais que ainda hoje se encontram nas catedrais. 
			Postado na posição do personagem, o narrador reavém e sintetiza em 
			frases-cristais largas faixas de vida transcorrida. São parágrafos 
			breves, como riscos impressionistas e apressados, que intentam ou 
			ensaiam remover um vulto de episódios para um mínimo centro, na vã 
			tentativa de os aprisionar. De tudo dizer, sem ceder ao uso da 
			gordura das palavras, muitas palavras, o “contar palha” da gíria. 
			Por outro lado, mais do que abordagens textuais que imitam ou 
			pretendem imitar técnicas fílmicas ou de vídeo, nota-se um apropriar 
			de materiais atinentes ao teatro. Desde logo, na encenação 
			criteriosa e fiel de palcos que suportam os personagens, a 
			reconstrução de sítios, locais, ambientes ou atmosferas. Em que tem 
			papel fenomenal o fluxo da enumeração. Neste exemplo, utilizaremos o 
			conto nodal, que dá título ao livro, “Campo de Trigo com Corvos” 
			para promover a tipificação: “Contratou peões de fora, tipos mal 
			encarados de outras plagas, outras praças, gaúchos, catarinas, 
			˝barrigas-verdes˝”. Observemos como se delineiam outras estilísticas 
			da arte de talma: O imprevisto é um dos recursos que pode fazer 
			balançar o espectador na cadeira. Ele é aqui arremessado, quer 
			surgindo de-vereda, o designado “causo”, bem assim o pandareco, quer 
			atribuindo um rumo à história totalmente inverso, ou ao menos 
			diverso da lógica que as teias já desarmadas anunciavam. O equívoco 
			é, como se sabe, o banquete de muitas peças de teatro. De algumas em 
			exclusivo. Ele provoca o espectador, obriga-o à concentração e à 
			reflexão (e ao riso ou sorriso), mantém vivo o desenrolar do evento 
			e o esforço dos atores. Aqui também ele atua, burilando surpresa nos 
			personagens, dando lastros de ironia às vidas encenadas, apanhando 
			na contra-mão o leitor. Quiçá, o próprio autor terá aberto olhos 
			quando da elaboração dos textos. Alguns títulos, algumas frases, 
			preparam para ocorrências posteriores do conto. É uma espécie de 
			levantar do véu, destapar de roupas femininas, jogo de sedução e 
			permeio. Que muitas vezes pode desaguar num dos recursos anteriores, 
			anulando ou aparelhando os efeitos: o imprevisto. Mas, o mais 
			robusto de todos os recursos é o golpe-de-teatro. Repare-se que a 
			própria palavra de que vimos falando integra a nova palavra, esta, 
			aliada a golpe. Quando tudo se encaminhava no rumo certo, quando a 
			rotina ou a monotonia se estavam solidificando, eis que de supetão 
			tudo se desmorona, tudo se transtorna, ficamos submersos nas estrias 
			que estouraram sobre nossas cabeças, fica tudo de pernas ao ar, a 
			mesa, a casa, o livro, o corpo, a mente. Apesar de usado e abusado, 
			o conto produz-se hoje em doses avulsas. A despeito de sua 
			condenação, final da história e seus componentes-trave: narração, 
			tempo e espaço, decretados pelo noveau-roman. Não basta hoje dispor 
			magnanimamente da arte de contar. Não basta, como a Silas Corrêa 
			Leite, ser um domador de estórias. É condição, ainda e nomeadamente, 
			inventar histórias, seu entrechocar, prover à invenção de uma 
			“história nova”. Isso aconteceu muitas vezes neste livro. Mas 
			vejamos algumas das várias fórmulas de história com que nos 
			deparamos: Existe a história que é canto, beco e síntese em 
			“Boêmio”. Existe a história que se traduz inteira e integral em “O 
			Enterro”. Existe a que se senta na paragem, recusa avançar de 
			momento e aguarda o porvir em “Quando a Tragédia Bate em sua Porta”. 
			Existe a história que se metamorfoseia em lenda, veste-se mágica, 
			irreal, em “O Inventor”. Existe a história contida, espelho de 
			deserto dos tártaros, com tempestade iminente mas que não desaba em 
			“Campo de Trigo com Corvos”. Mas todo livro é ou pretende ser uma 
			obra literária. E é só isso que importa. Obtê-lo, consegui-lo, é 
			todo o mérito e o valor acrescentado possível. Também aqui se obteve 
			largamente esse desiderato. Observemos alguns dos meios. Ou fins. 
			Deitando mão de uma linguagem que, afora o popular, o linguajar, a 
			gíria, agarra os elementos específicos de dialetos, sintaxe 
			indígena, eivando a escrita de vocábulos originados do tupi. 
			Exercitando uma experiência genialmente rasgada noutros países de 
			língua de expressão portuguesa por Mia Couto e Luandino. Dando o 
			braço à metáfora, à imagem em novos moldes, revitalizando os textos. 
			E desse modo obtendo o viço, a chispa, o engaste de muitas frases. 
			Alongando a metáfora, expandindo-a, cingindo-a a personagens 
			inteiros ou à globalidade do conto. Metáfora que se transforma em 
			alegoria. Exemplo seguro de tudo que fica dito são os Corvos de 
			“Campo de Trigo com Corvos” e o “Muro,” ou em “Anistia”. Lançando as 
			palavras umas contra as outras, quando contíguas, provocando choque, 
			conflito, traumatismo, mas também colo, enlace, anel. E neste 
			particular merece realce a intensa e não pretensa construção de 
			novos vocábulos. Fruto de tentativas ou abordagens díspares. Usando 
			a colagem, a composição, errônea em aparência mas sempre imprevista, 
			como no caso de “esposa-vítima”, “vento-coisa”, “nuvem-lesma”, 
			“instante-trevas” ou “lebre-dor”. Recorrendo à síncope, como se 
			verifica em “marra” e “garra”. Provocando a junção, de que poderemos 
			enunciar “enfebre”, “nágua” e “cinzazul”. Adstringindo a preposição, 
			prefixada, em “de-vereda”, “de-assim” e “de-primeiro”. Neste campo, 
			de trigo literário, em que muitas letras são corvos, entendo que o 
			mais subtil e profundo recurso resulta do germinar de vocábulos 
			novos, que estimulam os acordes da sintaxe, da fonologia e da 
			morfologia. Realizando cambiâncias, muito pouco vistas e nada pouco 
			inesperadas. Ousando obter o substantivo a partir do verbo, do 
			adjetivo, ou mesmo do próprio substantivo. Obtendo ligas que só ao 
			alquimista são permitidas. Vejamos. Do inúmero número de vocábulos 
			em que se verifica um processo de alteração da categoria sintática, 
			ou manutenção sintática por força de novo vocábulo, quer por ação da 
			base quer do derivado, topamos estas nominalizações deverbais: “acontecência”, 
			“havência”, “pertencimento”, “andação” ou “conhecença”. Como apodo 
			de nominalização denominal, poder-se-ia citar “mentirança” e “medaço”. 
			Para não jazer nas plagas do vazio, eis também uma adjectivalização 
			denominal: “encrenqueira”. Recuando: perante o impasse da estória, 
			notória se torna a premência da exploração de técnicas e moldes e 
			dados inovadores. Porque não basta à ficção reproduzir a realidade 
			ou ser espelho do real. Isso já se fez ou é horta de outras artes. 
			Da perícia autoral depende a superação do real. Mais: a sua 
			subversão. E é o que acontece substantivamente em “Campo de Trigo”. 
			Podemos apontar o irreal em “O Inventor”; o surreal em “Anistia”; a 
			subversão do real (pelas palavras) em “Justiça”. Estas e outras 
			estórias é que provocam o avanço. Deixando as restantes coladas, 
			como pinto recém-nascido a casca-de-ovo, a correntes literárias 
			recentes. E já que entramos na corrente, deveremos referir a mais 
			ousada ousadia presente neste livro. Algo que apelidaríamos de 
			transrealismo. Obter do texto a superação do real, a sua 
			mistificação, submeter e soterrar normas, o erigir de um outro real. 
			Isso acontece aqui e ali, mas de forma exemplar no conto mais de 
			todos escatológico: “O Osso” (também em “Congonha”). De que 
			retiramos três análises resumíticas: a mulher que se dá ao pai e 
			depois ao filho, sendo carne para o primeiro e osso para o segundo; 
			o homem que, elo em Kafka, devém canino, o filho-cão; a habituação a 
			baixas desumanidades que impede um ser humano de reverter após uma 
			vivência animalesca. Falávamos de artes plásticas. De artes cênicas. 
			De linguística. E, sobretudo, de arte literária. E corrente. 
			Literária, claro, mas não só. Tudo muito apreciado. Mas então, e a 
			vida? Porque é o sangue dela que muitos pretendem, ou preferem ver 
			escorrer das letras dos livros. Diria: Existe, como metáfora da 
			terra, e dela, a vida, um extenso campo de trigo. E pequenos pontos 
			negros no meio do trigo, os corvos. Este é o palco, é aqui que tudo 
			decorre. Com o sol por testemunha ou sob o céu noturno. Os pequenos 
			pontos negros por vezes exaltam-se. Rebelam-se. Ficam loucos. Pode 
			dar na destruição de todo o enorme campo. De trigo. E é assim que a 
			vida se eleva (mesmo quando derrubada). Porque ela é em simultâneo 
			Luz e escuro 
			Branco e negro 
			Gozo e dor 
			Água e fogo 
			Campo de Trigo e Corvos.  
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			Antero Barbosa – Literato de Porto, Portugal (Poema, Ficção, 
			Ensaio). Licenciado em Estudos Portugueses, Diretor de Escola de 
			Ensino Superior. Crítico Literário, autor dos livros “Contextos” 
			(Contos) e “Ramos e de Repente (Poemas). Prêmio de Poesia Brétema, 
			1990, e Prêmio Trindade Coelho, 2005. 
			 
   
			
			 
			 
			
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