Antero Barbosa
Montana Fria
Abraçados. Os dois. Como um só.
Quietos. Mostrando a pele misturada aos lençóis sob o dossel posto
no quarto alumiado de velas que criam uma brancura creme em tudo.
Perceptível de cheiro. Creme. Mais intensa a luz e afogueada no
vidro da janela. Na qual se ouve o ruído assolador da noite
devastada de chuva agonizante de vento gritado. Contra a janela.
Contra o quarto imune. Em que os dois desatam de respiração mal
quieta. Sossego deitado sob o corpo de lua-de-mel derrotada por pés
cansados do baile todo do dia.
O frio é
estranho animal. É aéreo nos fundos, no alto ataca as superfícies.
Fazendo osmose com a água ou seus fios. Criando uma nova pele. Creio
ter sido o primeiro fotógrafo do mundo. Na alta montanha o frio
condensa-se. No sol baixo de inverno cristaliza os sítios todos.
Tocando-os com um milagre de pedra. Parece um mundo parado. Adormido.
As águas, as correntes, os restos de nevoeiro solidificam.
Transparências brancas. Vida sustada. Refugiando-se em casas, onde à
lareira, onde um pouco de calor se enlace nas pernas. E nos rostos
encolhidos. Ali no centro do mundo. Como num caixilho.
Eis uma das
fixações. Sara penetrando na aldeia atrás do carro de bois que
transportam a mobília e agora passam em frente às obras da casa em
que Nelson trabalha. Não parou Sara, nem Nelson retirou as mãos dos
gestos operários. Os bois autónomos avançam deixando atrás a casa em
obras. Mas o flash consuma-se. Podes ver Sara de perfil, redondo
vestido branco ondulado, rosto endireitado para a casa que a vai
abrigar, se subires o olhar e a parede da casa até ao telhado,
Nelson, aparentemente de cócoras, ensaia uma passada e nos lábios
que olham Sara um sorriso que nasceu permanece ainda a desabrochar
de pétalas.
Por vezes
tentam-se encaixar as peças da vida de uma forma totalmente
desconcertada. Mesmo que a aparência reflicta o contrário.
Mistura-se tudo jogando o ângulo do refúgio. Tentando apor, por
exemplo, a última idade com a infância. Porque o pai de Sara, morta
a mãe desta, a seguir à sua morte, coloca o regresso à aldeia de
infância onde possui uma propriedade.
Várias infâncias
entretanto haviam decorrido. A de Nelson, por explícito. Totalmente
sepulta já. Nelson é o símbolo da excepção. Obtendo de forma fácil a
conciliação nos palcos do conflito. Ou virando costas à derrapagem,
perfeitamente natural e humanamente perfeita, dos jovens de sua
geração que permitem que os sentimentos se joguem até ao fim.
Mas a distinção
torna-se ainda mais evidente e encarnada em Sara. Desde que chegou
com selos da cidade. Brilha, refulgente. Em todos os sítios, em
todas as conjunturas, em todas as conexões. Confundindo de espanto
as gerações anciãs, infantes e a dela. Observada de olhar de navalha
nos locais públicos: a igreja, o casamento, a escola, o leilão. E,
de seguida, em terrenos particulares: a moradia doméstica, as leivas
da propriedade, os atalhos de saibro. Dois entre outros aspectos
contribuem para a sublimação: a doçura do trato usando palavras como
espuma e a intensidade da higiene quase coroa raiada. Mesmo dando
mão a todas as lides domésticas e inserida no umbigo de todas as
fainas agrícolas, sempre seu vestido permanece no âmbito da
brancura. E ela, quando ressaltam os folhos da roupa interior, o que
não é raro, insinua o alvitre de que mulheres há que renegam o
acinte da menstruação. No que refere ao oiro e ao fulgor e à leveza
dos cabelos, retorquia às raparigas que a questionavam coradas: - A
limpeza, da cabeça e do corpo todo, depende apenas da água e do
sabão de todos os dias.
Sara e Nelson
eram apenas duas peças das muitas que ocorriam no verde alteado da
montanha. Verde denso, de musgo. Como alguns sentimentos condensados
de suas células. Confundidos, apesar de tudo, no arraial de corpos e
mentes. No dealbar de dias e peripécias. No junço de cerimónias e
rituais. No deslize de cenas e diálogos. No álbum de crónicas e
ocorrências. No esvanecer de surpresas e tradições. Se esbatendo ou
enfunando.
O acaso, talvez,
tantas vezes buscado, como aranha desenha sua teia. A fragilidade
feminina, invocada pelos demais dos homens incluídos pais e irmãos,
obrigou Sara a recorrer a Nelson. Especialista em manobras manuais.
Assim ele pôde se ofuscar com o interior de uma casa brunida por
dedos de fada. Brilho que o estimulou. De forma a consertar, quase
como artista, a janela que teimava em permitir que a água,
transposta do exterior sem pernas, veiculasse a degradação dos
soalhos.
Os domingos, oh
os domingos! De manhã ela deslumbrava a missa toda na leitura da
epístola. Afogada no vestido cor-de-rosa, mais límpido ainda se
possível, donde ressaltava o tecto de dois seios em geometrias de
esquadro não vistas. De tarde, no passeio de entre-campos com o pai
ou a empregada deixava reluzir os braços como se um pouco de sol
disperso, de torno onde a morenez, insólita ali, mal permitia que se
espetasse a nuance da cútis. No final da tarde, o dia esvaindo-se,
era nela que Nelson pensava. Como algo inacessível. Tal os pássaros.
Que, por temperamento, era incapaz de fisgar.
Ela perorava em
seu quarto nocturno, já liberta das conversas incessantes do pai.
Fitando a luz amarelada, corpo descoberto a que não dava
importância, porque um corpo só por outro pode viver sua própria
vida, estando morto em reinos onde pactua a ausência. Sonhava com um
rio calmo, jazente leito de seu viver. Possuía em potência todos os
atributos para a escalada social, e disso tinha noção, mas gostaria
de ficar ali tranquila ao lado de seu homem, deixando discorrer os
anos. Pensava em toda a gente, mas com enlevo especial em Nelson. A
quem não acrescentava nenhuma exigência. Mas especulando que, se a
seu lado, muitas vezes viriam a ser invadidas e rasgadas, em
turbilhão, as mornas águas quietas de sua existência.
Não estavam sós
naquele encontro, na boca da manhã que encheu de calor excedente o
dia e os que se seguiram. Premeditado ou talvez não, estavam
frente-a-frente. Rosados ambos, ela de tez natural ele por a
enfrentar. Apesar da segurança, ela se sentia amordaçada por gaguez
igual à dele. E dolorosamente sentiram, os dois, que era impossível
abraçar a vida, a que ali vislumbravam como fogo renascendo da
terra. Tudo o que poderiam fazer era tactear sua epiderme, a medo,
mas inebriados todavia, compondo fugazmente a teoria dos esboços
ainda e sempre incompletos.
O casal não tem
a possibilidade de se ver. Se mirar. Vê, observa, esfacela com seu
olhar o outro. E vice-versa. Mas não pode ver ao próprio casal.
Moldar seu instantâneo. Isso só a terceiro é possível.
Designadamente a quem possua talento de realizador. Ou de escritor.
Ou de pintor. De criador, em suma. Só esse terceiro, e raramente o
faz ou a vida o equaciona, fixa em vertigem alucinada de paixão a
imagem separada, estanque de movimentos, todos os movimentos vitais
que soltos fluem. Produzindo o mármore. A estátua. A fotografia.
Quase branca, por efeito dos anos futuros.
A visão de
casal, jovens e perfeitos, usa sempre na convicção. Como paradigma
do que devera ser o ideal, como apanágio do poder que tu tens,
único, de os ver e te substituir a um deles. Vivendo ou afastando
sensações que aos dois não são permitidas. Porque não são casal,
nenhum deles, apenas meio continente. Sofregamente pressionado pelo
outro. E mais ainda por si próprio. Até ao sofrimento macerado.
Buscou então
Nelson perversamente o sabor do regresso. Saindo amiudadas vezes às
povoações vizinhas. Falando alto nos atravessamentos que fazia de
riachos e leivas. Demorando, deixando cair a noite e esfriar a ceia
e o coração da mãe. Correndo depois em busca de cansaço, de suores.
E do leito, como túmulo benfazejo, incrustado e centrado na aldeia
onde tinha tudo. E nada possuía.
As posições
haviam-se invertido. De baixo para cima os olhos de Nelson, de cima
para baixo os de Sara. Era irrefragável. Mas o sentir, pulsando em
peitos opressos, vivia de altura idêntica. No entanto, o plano
habitual estava invertido. A cidade, o luxo não ostensivo, a cultura
coabitavam com Sara. Por força, Nelson se iria entregar a alguém de
sua laia. A quem pudesse olhar fito. Ou mesmo de soslaio inicial. A
não ser que ... E Sara não hesitou: envolveu-o com todo o algodão
que dispunha, usou braços inventados, o sorriso dos lábios que o
esmagavam enunciou com palavras que o obrigaram a estacar.
Deixando-se envolver. Como uma donzela. Apodo de lesbianismo.
Ela não havia
condescendido às libertinagens consumadas das outras raparigas. Mas
lidava bem com suas lábias. Que nele experimentou. Ele não tinha
ainda ascendido nas laias carnais dos moços que o tomavam por
colega. Ou amigo. Inteiriçado e recolhendo-se sem conhecer do motivo
que de timidez não tratava. E isso lhes permitiu inchar a flor da
pureza a dois. Com um casamento, a pulso por ela determinado e por
ele candidamente aceite. Para que a noite fechasse o dia.
Algumas peças
aqui ficaram, soltas. Quem queira ouse a tentativa de as encaixar.
Por todas as ordens e leit-motiv. Mas será tarefa, não direi inútil,
porque sedutora mas, não conclusiva. A vida é como um sangue de
índole diversa. Nunca desagua em foz. Quando um ciclo se conclui ou
tal se aparenta, outro renasce, muita vez já condicionado pelo
anterior. Ou por impulsos idênticos porque derivados de mesma
pessoa. Mas façam-no, delineiem o puzzle: instilando parágrafos em
pipetas de laboratório.
São diferentes.
De todo. Nelson e Sara. Nesta, as arestas limadas do mundo urbano, a
cultura esfiada, o vidro reflectido que ressuma das relações. Por
oposição nele ao alvitre campestre, à nudez soletre, engastes
primordiais e perenes, natureza aproximativa. Possível encastoar
esses dois mundos? Engastá-los numa tepidez, morna de respirações e
afastada de cilícios? Não queremos saber. O tempo vem a caminho.
Prenhe de desafios, portador de diferenças brutais e de suas mãos.
Fixemo-nos na película desta noite. De corpos enlaçados.
Cristalizados num só. Resfôlego. Como a montanha em volta, grandioso
glóbulo inerte por onde escorrem as estações. Azougadas como deusas.
A que a montanha não liga.
In “Contextos (contos) – Prémio Trindade Coelho 2005
– 2.º prémio.
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