Antero Barbosa
As Formigas
Há épocas do ano
que ganham corpo. É assim como uma gravidez que se precipita
irreprimível. Vem-se anunciando em pequenos pormenores e de sua
acumulação cicatrizada nasce uma força quase de ossos bulindo. Elas
existem vagamente no calendário nos dogmas nas tradições que a voz
do povo não permite vingativamente que faleçam e como um coro talvez
como uma pedra nos atiram aos ouvidos. Esse percutir nos transforma
até à habituação. Depois a natureza se encarrega de decorar o palco
em que brevemente nos movemos e extinguimos.
Assim acontece
com a páscoa. Dois personagens vamos encontrar empenhados na árdua
tarefa de manter os ecos repetidos. A língua que se transforma na de
víbora mesmo. Quem pudera observá-la ao microscópio veria as suas
múltiplas circunvoluções, a rapidez com que sobe o céu da boca
desliza pela face escorre no esmalte rebentado dos dentes; as
papilas produzem vasto arsenal de saliva porventura propício a banho
tão alto como morte de bebé; e a garganta, tal minhoca incessante,
remove monotonamente as aduelas. Todos os órgãos do paladar assaltam
a memória: eis o sabor oval da amêndoa, os folhos amarelados do
pão-de-ló, o enjoativo estraçalhar dos ovos de chocolate, as cavacas
como brancos caranguejos em cujo dorso a boca penetra, os biscoitos
que nascem em profusão das caixas; eis a vermelhusca fêvera de
cabrito ou a de coelho perna o de pelinho branco e olhos ruivos, o
peito gordo do galaroz que atirava setas de som nas madrugadas; eis
o moscatel empastado como sangue de boi, o espumante que fornece
miríades de pulgas frescas às paredes do estômago, o tintol com
artes de recriar bigodes republicanos.
O segundo e não
menor personagem é o olfacto. Como sagaz rafeiro, mal entra na
aldeia absorve a epifania. Sente-se na brisa, as árvores estoiram de
pétalas, os campos estão gordos de esmeralda e os pássaros são
ribeiros de encosta. De forma que o cheiro fértil é verde. Mas
também ele assalta a memória: lá está a amêndoa com seu aroma de
camisa engomada, o ácido e vermelhusco odor da perna de cabrito, o
pão-de-ló com seu travum a ovos. Conhecem o nariz dos coelhos adunco
e irrequieto, seu movimento de moinho, assim de aurículas expulsando
o sangue?
*
* *
Poder-se-á dizer
que a sagrada-família pode ser destruída pelo quadrilátero. De facto,
além de Jonas e Lucília, e Rufina filha dos dois, ia o afilhado dos
primeiros em belicosa porfia com a última. Mas não se trata
exactamente de dois casais. Reparando bem, Rufina e Joel vão sempre
juntos, ora um ora outro na dianteira. Mas a sua concatenação é
total. A distância a que porventura se separam não lhes permite
quebrar o bocadito de elástico da sintonia em que caminham, ora
parando a apontar algo que os seduz, ora em pequenos trotes ou
correrias como se de rafeiros brincalhões se tratasse.
Lucília leva a
cesta. Leva a toalha branca, de linho talvez, cobrindo-a. Leva os
sapatos justos e por isso manqueja um pouco. Leva os ouvidos
perniciosamente aptos a detectar ao longe o ruído de qualquer motor.
Leva a blusa justa e esta resplende como um trapo de céu. Leva os
olhos derramados no corpo dos miúdos, da mesma forma que o faria o
jorro de uma lanterna se da noite se tratasse. E grita:
- Fininha, está
quieta, não sejas malandra! Ju, então, não se atiram pedras ao
tanque! Cuidado!, ide sempre pela beirinha!
Porém Jonas,
embora porventura lado de água, mantém a consistência do
quadrilátero. Ele segue atrás. Sempre atrás. Como que hipnotizado.
Aproxima-te de Jonas. Não, não vais estilhaçar o quadrilátero. Jonas
entenderá. Podes aproximar-te. Agora repara: os olhos estão como que
adormecidos, oh não, agora estão demasiado abertos, abrem-se até à
brancura. Mas eles não vêem. Possivelmente está pensando. No entanto
segue. Será que ouve os gritos de Fina e Joel? Mas a distância com
Lucília mantém-se, os mesmos dois passos os isolam. Repara agora: a
boca também se entreabre, túmida, cavalo com cio vai no prado plano.
As pernas são movidas a compasso, dá ideia de que alguém as atira de
cada vez, não distinguem as pedras ou algum tufo de ervas ao seu
alcance. Como resfolga o peito!, repara, ondas e ondas que se
quebram convulsas. Será que se entrega? Ou absorve? Será que pensa?
Acorda enfim,
Lucília cruza-se com outra mulher e falam:
- Então
Miquinhas, deixou lá alguma coisa para mim?
- Ná, caramba,
ainda ficou lá muita coisa!
- É que eu não
encomendei, sabe?
- Quer não,
escusas de te afligir, ainda lá ficou muita rosca.
- Ainda bem,
senão era uma viagem sem proveito. Melhor assim.
- Bem, então
vamos lá. Opa Tónio, toca a andar! Lucília, vai com Deus!
- Até logo,
Miquinhas!
Vão já nos
Campinhos e embora a cadência de passo se mantenha em Jonas se nota
uma metamorfose. Vejamos, é como um relâmpago sobre seu corpo, a
modos de um soluço que escorre pela espinha, assim os cevados
estertoram na matança. Aproximemo-nos. Os olhos de Jonas estacam. As
pernas avançam, no entanto os olhos recusam-se a tal. Como duas
pedras. Ficam-se nos Campinhos. Agora Jonas começa lentamente a
diminuir. Primeiro desaparece a barba, depois parte do cabelo que
toma uma forma curta e arredondada, agora as pernas, os braços ficam
reduzidos a cerca de metade, estreitece o dorso e a cintura,
estranha maldição, fica do tamanho de sete anos. Lá estão as
laranjeiras reluzindo como folha de espada, lá está o Abel, já da
quarta classe, está contra o tronco da laranjeira, procura abrigo e
grita. É um grito desvairado, de javali, mas nem Jonas nem os outros
miúdos atiram um passo em sua defesa. Perto deles lá está Caim, não
é esse o seu nome, talvez António ou Manuel, mas para Jonas, cujo
peito ficou doravante penosamente contraído sempre que ali passa, o
seu nome só pode ser Caim. Caim arremessa pedradas, elas aí vão
arqueadas, a sua parábola zune e algumas batem em cheio em Abel como
se tombassem num tanque. Ele chama-se Abel, miserável coincidência.
E os seus gritos derramam-se pelo campo, coalham, só eles são corpo.
Os olhos de Jonas incham, neste momento como outrora, e de súbito
num sacão ele retoma os trinta e sete anos. Fina e Joel também
gritam, mas as suas vozes saltitam, bagos de alegria no sol da
tarde. Caim lá está, lá continua a criar as amargas parábolas de
pedra, Abel arranca uivos estertorosos, ali ficam como cristalizados
em vitral, num êxtase maldito. Jonas estremece. Caim, ou Manuel ou
António, morreu esbarrado, vinte anos após este outrora, dez anos
antes deste agora. Ali está a escola com seus cedros, o terreiro tão
largo que era o mundo, e Jonas, muitos Jonas diferenciados que
renascem como jactos de água em chafariz. Eles são maiores, menores,
de gancheta e roda, de fato, de água em bica de cerveja nos lábios,
Jonas não consegue deter esta brutal sucessão de partos. De tal
forma que após atravessarem a rua principal, vai com Fina beber ao
fontanário, outrora chafurdo, embora a sede fosse caracol ainda
recolhido. E seduz Fina através do centeio, corta uma espiga em que
reluz um insecto vivo como sangue, mostra-o e chama-a:
- Fina, olha uma
joaninha!
- Ai, dá-ma pai,
que bonita!
- Toma, ela é
pequenina. Se disseres “joaninha avoa avoa” ela foge.
- Oh, já fugiu
!...
- Pois, tu
disseste “joaninha avoa avoa” e ela voou.
- Intrujão, não
disse nada ...
- Está bem, há
mais, olha outra ...
- Oh pai, dá-ma!
E, ovnis
minúsculos, os insectos se elevam em direcção ao giestal.
*
* *
Regressam. A
direito, pelos campos. Na mão de Jonas, pedra incrustada vivamente
ruiva, a infância se demora. Leão domado. Mas o menor ruído, a menor
desconcentração, um pássaro uma folha podem despertá-la. E
desertará. Como as joaninhas. Que afinal são insectos mais dóceis.
Porque não nos deixam ser joaninhas.
Foi o que
aconteceu ao chegarem ao Calvário. Já desde o início elas passavam,
sozinhas ou com o filhito. Como pintura de Malhoa: redondas saias
enfunadas, rosto crestado, a cesta com seu tecto branquíssimo, o
passo lento de boi na lavra. Dentro, adivinhava-se a roda amarela do
pão-de-ló, aninhada na toalha. Assim os frangos vão à feira. Assim
as tripas procuram o riacho pelas matanças. Elas passam, cruzam-se,
também a velha de rosto pregueado, olhos subtis de quem leva coisa
roubada.
Mas no Calvário
a estrada alonga-se, nasce em comprimento, despoja-se de curvas. E
contra as ramadas já em botão, a cabeça e a cesta acima das agulhas
do centeio, ou toda viva no cimo da encosta, a pintura de Malhoa lá
vai, mais devagar quanto mais longe. E outra, e outra. Também a
canalha, insectos de roupas reluzentes. Quando passam, o rosto vai
alumiado, abrindo-se, a cesta encerra prodígios, as caras tornam-se
doces. Tal como a regueifa, tal como o dia. As aves estão quedas.
Por vezes alguma levanta a voz, um fio frágil, branco, uma gota de
água no calor que cresce. A cesta é branca, não a cesta mas a
toalha, não a cesta, as cestas que em fila as mulheres transportam
em direcção a casa. Larga fila, esguia, de brancas cestas na tarde
branca, um odor amarelado escorre. As mulheres prosseguem, assim eu,
Jonas e Lucília e Rufina e Joel, estamos encerrados na branca
fileira pela via que sobe sobe suadamente. Levamos a cesta, as
mulheres levam a cesta, como um facho, devagar devagar, como um bebé
precioso as vamos depositar em casa. E as mulheres, de brancas
cestas, recortam-se na estrada. La vão. Lentas. Cansadas. De rosto
aberto e alumiado. Entre o incenso da tarde.
Formigas!
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