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Jornal do Conto

 

 

Antero Barbosa


 


A última façanha


 

Aquele casarão submerso na folhagem de altas árvores é a Casa do Telhal. Das árvores, a maior de todas é um carvalho gorducho, com o tronco esburacado em covas castanhas e alguns ramos já secos, que irá cair daqui a 15 anos, derrubando o muro da quinta e da quinta vizinha. Por agora, bem se pode considerar coreto, de tão barulhenta passarada que nele canta todo o dia e toda a noite descansa.

Face ao carvalho, ergue-se um casarão caprichoso, aranzel de janelas, varandas e águas-furtadas. Pelas paredes sobe hera desgrenhada, ramos de japoneira abertos num manancial de folha escura. São como filhos agarrados às saias da mãe fecundante. O sol da tarde vagueia no sangue morno dos telhados, espraia-se, cola o ar calado a um voo branco de pombas, vai com elas até à fímbria no horizonte, por trás dos pinhais. Parece que a tarde acaba ali. Mas não, o fogo refulge de novo no casarão, nas janelas que ficam incendiadas de reflexos doirados.

Ali vivem duas ricas e respeitáveis velhotas, Dona Tancinha e Dona Carlinha, ruínas amorfas de heróicos fidalgos e burgueses. Elas possuem sangue sereno, quase adormecido sob as rugas, lápides cobardes dos Fuas, dos Ramires, dos Pereiras talvez. Um ascendente loiro, moço ainda, combate em Ourique, arremessa espada e cavalo, vestido de raiva, cai fulgente do sangue que lhe escorre do rosto misturado com suor; em Aljubarrota, um outro de cerradas barbas detém o espanhol atrevido, destroça corpos e corpos, a boca espumando de denodo; outro ainda, dirige-se às índias ansiadas, entre furiosas ondas e escorbutos, desafiando a morte que o surpreende em saltos de loba; um último, de face contra a janela, luta pela noite dentro com o corpo de vento das palavras, suja nervosamente longas tiras de papel.

Com o rodar dos séculos, as fainas tomam feição diferente para os antepassados da Casa do Telhal: um latagão vermelhusco surge no cerro dos montes e tojais, em sôfrega carnificina a coelhos bravos e perdizes, com a fome e o arrojo dos progenitores que caíram num hausto de braveza na segunda grande guerra.

Toda a gente conhece a façanha de Aniceto Campos, o último esteio do morgadio. É numa quarta-feira de Outubro, insultada de vento e chuva. Nas adegas os ferros da prensa rangem, o vinho escorre rumuroso em jorro de fonte invernil. Eco talvez dos heróicos antepassados que bebiam o sangue aos sarracenos, Aniceto Campos assenta os lábios no lagar e bate o record da vingança ante o espanto dos jornaleiros. Aparelha o cavalo, sai, corre à desfilada, herculeamente fincado na mão o chicote à laia de espada. A chuva vergasta-lhe o rosto, o vento insiste em roubar-lhe a roupa e o cabelo. Aniceto Campos nada ouve, nada atende. Homericamente abraçado à cilha do animal, deixa para trás as árvores surpresas, os cães aterrorizados. As ferraduras rosnam no saibro, chispam nas pedras mais ousadas. Um pequenito aparece no caminho, o chicote rasga-lhe a face, cai aos uivos espalhando no chão o saco da farinha. E o herói sempre a devorar nevoeiro. Quixotesco, arroja ao chão duas laranjas maduras com o entusiasmo de quem decepa duas cabeças de mouro. O patriotismo cega-o, o chicote zune nos ares, à procura de mosquitos talvez. Às tantas enrosca-se numa frança, e como o cavalo não tem a genica daquele outro do avô Fuas, não há senão largá-lo. O glorioso cavaleiro corre o risco de malhar contra o chão as valorosas costas. Apesar disso, de sangue em lume, grita ao vento, à água que o alaga, aos montes cosidos de espanto:

- Perdida a espada, sim, mas não perdida a batalha!

E num tropear magnânimo, trepa derreadamente os outeiros onde as filas de troncos o ameaçam negramente. Sobe um cerro, desce outro, volta a subir e a descer. Num voo aflito, as aves que se abrigavam nos galhos investem contra a chuva. E os sapos encolhem-se mais nas tocas.

Um ribeiro trava as pernas briosas do cavalo. E o falso condestável voa-lhe sobre a crina, vai-se espatifar na água que geme amorosamente enlaçada aos seixos. Uma espuma branca ressalta ao baque do corpo, como assustada, cor de medo. Da boca famosa um visco rubro começa a alastrar na corrente. Sangue decerto. Num arranco estreme, desvairado, o infeliz grita a toda a força, de mãos apopléticas, acordando a montanha que o chora em grossas lágrimas:

- Pátria, por ti morro!

E morreu. Foi a última façanha da portuguesíssima geração.
 

 

 

 

09/03/2005