Antero Barbosa
Tríada
Esta é a casa de Fernanda. De pedra,
assobradada, largas janelas estirando brilhos pela quinta. Aninhada
no folhedo, deve-se subir à varanda para espraiar olhos nos sítios
nascentes e socorrer-se do quarto dela para afundar as vistas nos
tons escuros do dia que cai.
Se fosse
possível desenhar os rastos dos pés de Fernanda, a sua esteira
geométrica desenhada no dia-a-dia em que gasta vida, obter-se-ia um
traçado curioso. Como todos. Aparentado, ou molde, do de outras,
muitas, pessoas. Tratar-se-ia de um mapa limitado, confinado, um
pouco a imagem das linhas de sua mão.
Poderíamos
observar riscos finos, ténues, e outros densos, carregados. Todos,
com poucas excepções, bordejando a casa, a quinta, num raio nunca
superior a duas milhas. Alguns, raros, atingiriam as três milhas, as
cinco, e um havia que se aproximava das dez. Não seria complicado
ler a frieza daquele itinerário, o halo de hábitos e emoções ou
ausência delas que o envolvia, a lenta teia e meada desenredando-se
com morbidez de pedra. Sem carecer de apelar a análises subtis ou
complexas.
Os riscos mais
grossos levam à horta onde colhe a couve galega, vão dar à bica de
que escoa cântaros de água, à mercearia a que vai mercar o arroz e o
açúcar, à casa da madrinha a quem atribui palavras, bastas,
entremeadas de beijos. Quentes, calmas, as palavras, menos ainda que
as que de permuta recebe. Um outro rego negro, avantajado, liga a
casa de Fernanda à igreja de que ouve as missas e é catequista.
Bem diferente é
o mapa de Francisco, traçado aqui, a partir desta casa de lavrador,
duas léguas abaixo. Com ele gastaríamos todos os conhecimentos da
geometria. Imensamente riscado, todo em gatafunhos, dirige-se nas
várias direcções da rosa-dos-ventos, alonga, alarga, percorre todo o
concelho, grande parte dos contíguos, e atira com setas e arpões
para outros distritos, para sul, mesmo ao estrangeiro. De vez em
quando engrossa em determinada povoação, onde namora, depois
desloca-se e acentua-se numa outra para onde transferiu o namoro.
Mapa mais de cem vezes superior ao de Fernanda, orlado de, ainda que
imperfeitos, círculos, sinusóides, óvulos, elipses, espirais.
Exigindo escala de elevada dimensão. Curioso é o tom que se deveria
ou teria de atribuir a grande parte do tracejado: nocturno. Que
destoa da esteira debuxada a compasso e esquadro por Fernanda, toda
batida da luz do dia. Dos dias.
Este outro
sítio, como todos os sítios, propicia o acontecer de tudo e de nada.
É apenas uma poça onde a água se ancora, encravada entre leivas, que
avista o largo das vessadas e subjaz a hortas submersas em vinhedo.
Quando a noite se aproxima, o sítio escurece: o muro sobranceiro, a
hera que escorre em cabelos, a erva horizontal, ofundo verde da
poça, por fim a própria água. Torna-se tudo tão nostálgico, parado,
acabrunhado, convidando a vago suicídio. Foi assim Francisco
abordado pelo sítio na tarde daquele dia em que sentou para
descansar. Na frescura intensa da erva que progressivamente lhe
começou de alfinetar o peito.
Fernanda está em
dificuldades para manter vivo o traçado de alguns de seus sulcos. O
da bica, por exemplo, onde procura não água para a sede mas a sede
das palavras das raparigas e, cora de o dizer, dos rapazes. A mãe
tenta atalhar-lhe os passos: porque não tem necessidade de ir à água
tendo-a em casa e na quinta, porque não deve misturar-se com aquela
mocidade brava e um pouco rude, porque não tem que gastar seu tempo
e sentimentos no exterior mas dedicar ambos à família. A teoria do
não, a que Fernanda se mostra esquiva. Pior é quando as palavras,
roucas e determinadas, assomam do pai que a intima com olhos
poderosos. Que a derrotam. Em lágrimas mal retidas que no quarto ao
fundo esconde. De bruços na cama e ignorando o poente que prepara a
escuridão da noite.
Sem que ninguém
se apercebesse, um novo vestígio começou a ser traçado, fundo, pelos
pés de Fernanda. Sobrepondo-se em parte a terrenos por outros riscos
já delineados, com outros forjava tangências, abria diagonais,
esbarrava na perpendicular.
Desaguava no tal
sítio, onde a água da poça permanecia quieta em seu espelho. Neste,
poder-se-ia observar, ao fim-de-tarde, o vulto de Fernanda que outro
vulto cingia, provavelmente em abraços já demasiado fechados, apenas
se poderia observar o jogo que produziam suas cabeças, de rostos
tocando-se e lambendo-se ou um lambendo o outro, uma mão que
mergulhava nos cabelos longos e depois no pescoço, depois descia um
pouco e desaparecia, mas via-se ainda o rosto dela constrangido,
rasgado, de lábios abrindo-se e olhos semicerrados.
Lentamente,
também a silhueta que das duas cabeças reflectia no espelho da água
desaparecia. Agora, apenas se poderia arguir uma adivinhação. Mais
ou menos segura. Pena que o espelho da água não se pudesse levantar
e soerguer-se e mostrar convexo o que estava acontecendo.
Provavelmente estariam os dois deitados sobre a erva, a blusa solta
e desapertada tendo produzido dois seios redondos, rijos, a saia
repuxada acima por mãos febris, ainda mais quando as pernas, grossas
e brancas de leite, faiscavam contra os olhos dele, obrigando a que
as pernas dele percorressem aquela vereda de fogo, juntando-se às
dela e juntando o centro crespo dos dois corpos.
Do dela e de
Francisco.
Ele a obrigara a
vir ali, obrigado também por visão que o deixara alucinado. Apesar
das experiências já debitadas em seu passado, com mulheres de bordel
da vila ou moças namoradoiras. Fora também ao entardecer, cruzou-se
com ela perto da igreja. Cumprimentou-a, trocaram breves palavras, o
dia rezingado de frio ameaçava de chuva. E quando ela se despedia, o
vento surgiu furioso e uivante, levantou-lhe as saias sem que
tivesse tempo ou jeito de o evitar. Bem acima dos joelhos, grossas,
brancas, leite entornado. Que explodiu de chofre e de cachão no
olhar de Francisco. Que com aquelas coxas ficou na íris bailando,
enquanto ela se afastava sem dizer palavra. E sem pernas, que não
sentia. Que com Francisco tinham ficado, brancas, brancas, e ia
jurar quentes e rosadas apesar do escuro em que haviam desfraldado.
Os mapas dos
dois tocavam-se, entrelaçaram-se, confundem-se, ascendem ao “nós”,
quase se fundem num único.
Nas tardinhas
combinadas, obtendo ou evitando pretextos, Fernanda desloca-se de
sua casa ao sítio. Obscurecendo e intensificando cada vez mais
aquele sulco, que parece já torneado por roda de carro de bois. Na
face do dia que cai, o espelho da água reflecte duas cabeças em
gestos próximo de loucos e revoltados. Depois, os dois vultos como
um só afundam-se e desaparecem da tona de água. Pena não os poder
observar mais. Pena que a água não possua ouvidos. E, de novo, só
poderemos deitar mão de dons divinatórios. Para perceber os rangidos
leves de roupas que se afastam, os gemidos finos dela, o rouco
prazer dele quase agreste, o arfar cada vez mais lento misturando-se
e confundindo-se, o som cavo e redondo de dois corpos que descaem em
sentidos opostos. E que se juntam outra vez: - Gostaste?, pergunta
ele e ela responde pouco convicta: - Sim. Depois acrescenta: - Tenho
que ir!, e quando surge novamente no espelho da água é sempre ela a
primeira a emergir, descomposta de cabelos, a blusa já se fechou e o
xaile vai-se encaixando nos braços e no busto tudo tapando.
O mapa de
Francisco, suas linhas, toma a feição do de Fernanda.
Circunscreve-se, limita-se, bordeja apenas a povoação, sobe em
pirâmide no sítio. Definitivamente os traçados dos dois, melhor
dizendo já os tratados, escrevem uma imagem mais do que aparentada:
comum.
Apesar de todo o
cuidado posto, a coisa descobriu-se. Ela recusava algumas visitas ao
sítio para não causar suspeita no jeito desconfiado da mãe. Ela
vestia roupas negras ou escuras para se confundir com o lusco-fusco.
Ela dava passadas medrosas de tal modo que nem os estorninhos a
pressentiam concentrados em seus ruídos álacres. Ela transportava
orelhas perscrutadoras de todos os sons, e de peito estremecendo
muita vez se achou surpreendida quando afinal se tratava de animal
tresmalhado ou mão de vento jogando ramo contra ramo.
Mas o mundo é
maior que nosso mundo. As saídas proveram ao crescimento da
intrigança. E nos caminhos da aldeia, mesmo ao anoitecer, naquele
tempo circulava muita gente. Homens quase exclusivamente, que
regressavam do trabalho ou de tapar o tufo de alguma poça. Como
aquela. Mas a dúvida subsistia. Não já na mente e na barriga de
Fernanda que tentava por todos os meios evitar que as pessoas se
apercebessem do florescimento atroz de sinuosas curvas. Exteriores.
Porque no interior um mundo, tremendo para ela, bulia aos pontapés.
Muitos anos
passaram. Muitos filhos também. Francisco senta-se no quarto de
Fernanda para onde se mudara e olha na direcção do poente. Pouco lhe
importa neste momento o casamento imposto pelos pais de ambos e que
já não apetecia. Pouco lhe importa que aquelas coxas se tenham
tornado roliças e alvo de varizes. Pouco lhe importa que Fernanda se
tenha tornado mulher e usasse de uma entrega difícil, recatada,
quase forçada. Desafiando sempre os brios dele, azougado e bravante.
De cotovelos
fincados no parapeito, olha o sítio. Chamado “A Poça”, o povo
provoca o baptismo de todos os locais de forma mais ou menos
obscura. O olhar é fito e enfronhado. As coxas, brancas de leite,
mostravam-se no adro, como brasa para ele, que as arrastava para a
beira do espelho de água, daquela, tentando apagar o fogo que o
queimava.
Que o queimara.
Porque tudo lhe parecia agora cena de filme. Que outro vivera, não
ele. E que ainda o acometia e assolava. Como se tivesse sido um dos
comparsas daquele par fílmico. E não fora. Porquê o tempo tudo mata?
De novo, uma vez
mais o vento levanta aquelas pernas de sonho, elas se chocam com as
suas nas ervas perto do espelho de água, e tudo acontece em seu
sangue.
Mas é tão subtil
como se não acontecesse. Ou fosse apenas reflexo do que tendo
acontecido se volatilizou. Drasticamente.
Não, nada disso
acontecera. Fora apenas uma alucinação. De que ainda sempre não se
livra.
De certo modo,
são irrelevantes as artérias que ainda constroem o mapa de sua vida.
Escorrem insones no povoado, de índole fugidia, quase virtual.
Dir-se-ia que as chuvas teimosas teriam apagado e delido os traços
vitais, tornando-os deléveis. E que as linhas agora gravadas haviam
transferido o mapa para sua mente, local único possível de traçado
ambíguo e vulcânico. Onde encontra topografia para soerguer ainda as
pernas de sua existência. A que vale.
In “Contextos (contos) – Prémio Trindade Coelho 2005
– 2.º prémio.
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