Antonio Naud Júnior
Como Espanha se Desnuda ao Olhar
do Outro
por Jorge Telles de Menezes (*)
Eu sei como é duro o ofício do
escritor em viagem. Ofício? Sim, e dos mais nobres que existem.
Nobre porque exige o maior despojamento, a maior humildade
interiores, um estado próximo da vacuidade para conseguir apreender
o Outro, o estranho, o bizarro, o perigoso, o abismático Outro.
Apreendê-lo até ele se tornar algo de nós, familiar em nós, um
sentimento de pertença, até mais uma intelecção de uma humana
família em que a outridade confirma a ipseidade. Rostos surgem no
presente, mas não vêm eles do passado, não repetem eles as mesmas
falas do drama do ser humano no mundo aí existente?
A Espanha, por exemplo. Recordo-me da
narrativa de um preso político alemão sobre as férias do seu
carcereiro em Espanha. Ele e sua família saíram do seu asséptico
apartamento na Alemanha, meteram-se por uma auto-estrada que só
acabou em Barcelona. Aí chegado, o oficiante da autoridade
dirigiu-se a uma esquadra da polícia para apresentar saudações aos
colegas espanhóis, e afirmar seu empenho em colaborar, mesmo de
férias, caso o dever o exigisse. Foi então para a praia onde
exclusivamente passavam férias outros colegas germânicos da polícia.
Depois de duas semanas, regressou com sua família, não sem antes se
despedir de seus colegas espanhóis. Correcto, não é verdade? Não só
correcto, como eficiente, higiénico, moderno, inumano e vazio. As
fotografias comprovarão para sempre que ele e a família estiveram em
Espanha. Estiveram? Em que Espanha?
A Espanha de Antonio Júnior não é a
desse turismo de obediência cibernética. É uma Espanha que dói,
porque expõe ao poeta brasileiro o seu corpo e a sua alma, antes de
se recolher no mítico, no arquetipal da criação colectiva da sua
história. Esta Espanha desnuda-se ao olhar viajante, traz à
expressão do seu semblante, como numa sucessão de máscaras de actriz,
as pulsões contraditórias da sua libido, a violenta e sanguinária
via para a sua emancipação histórica. Espanha como corpo amado e
odiado. O corpo é a arena em que as pulsões do inconsciente
colectivo ajustam contas. É contra o corpo ou pelo corpo que esta
Espanha se resgatará.
O viajante deste livro problematiza o
próprio eu em viagem, interpela o seu passado, questiona-se como se
questionasse o Outro ibérico que o desafia em sua alteridade. O
narrador destas crónicas não é um mero coleccionador de momentos
fascinado pelo fetichismo do típico. Bem pelo contrário, ele devém
personagem de encontros, situações-limite em que o problemático é a
sua própria reacção face ao inesperado e inconcebível. Com estas
crónicas aprendemos tanto sobre o ser-espanhol como sobre o
ser-brasileiro, sobre o Velho como sobre o Novo Mundo, porque o
autor viaja como quem vive uma paixão até ao fim. O apaixonado exige
do olhar do outro uma intensidade igual, uma autenticidade radical
como aquela que desvela. E Espanha oferece-se ao olhar de Júnior
nua, obsessiva, cruel e trágica como essa Carmencita de Prosper
Mérimée.
Estas histórias do escritor brasileiro
pertencem, pois, a mais do que uma cultura, elas são solo e mito
para um diálogo intercultural, um encontro do homem europeu com um
olhar que o interroga nos fundamentos da sua realidade pós-colonial.
E por vezes sentimos com o autor que essa realidade devém
perigosamente imponderável, que uma guerra surda e muda se trava nos
territórios da fronteira com a “barbárie”, uma guerra de vida e
morte pela sobrevivência nos confins da Andaluzia, guerra de uma
violência arrepiante, de um horror saído de um gótico transviado.
Não é só essa Espanha inacreditável, que balança ou dança com um
sorriso heróico, trágico, violento sobre o sem-fundo de seu mito que
ficamos a conhecer melhor com este livro; é, sobretudo, um autor de
extraordinária coragem na afirmação das suas opiniões, da sua
diferença e da sua pertença, cujo vitalismo é tão poderoso quanto a
sua imaginação, e assim nos mede, a nós europeus, na autenticidade
existencial de nossos pressupostos universalistas.
Aguda, Portugal, 23 de Abril de 2005
(*) Poeta. Autor de “Selenographia in
Cynthia” (2003).
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