Antonio Olinto
O sereno domínio do verbo
(Rio de Janeiro, 02 de maio de
2006)
É na poesia principalmente que a
literatura brasileira atinge seu ponto mais alto. O ponto em que
estiveram Drummond, Jorge de Lima, Quintana, Cassiano, Cecília,
Bandeira. Repito: poesia é, neste País, das coisas mais vivas e mais
avançadas que existem. Volta e meia, poeta novo começa a fazer
versos e a sacudir a mesmice dos estilos. Ou poetas já conhecidos
alcançam pontos mais altos no exprimir o talvez inexprimível.
O mais evidente exemplo desse
permanente renascer, de uma linha, e de outra, e de outra, é o do
poeta Alexandre Marino, cujo livro "Arqueolhar" reúne poemas que,
num desdobramento de temas, numa experimentação verbal própria, numa
retração de sons e numa explosão silábica cheia de significados,
atinge um nível de poesia que o situa entre o que de melhor tem o
verso brasileiro do momento.
No livro de Alexandre Marino,
predominam a rua, a árvore, a fruta, um pente, uma escova de dentes,
uma xícara, a montanha, o quarto, a pedra, muitas vezes a pedra, que
espera, contempla, acompanha tudo e aceita as mais diversas
possibilidades nua verdadeira poesia do possível.
Veja-se de que maneira obriga o poeta
a que a rua nos acompanhe, no belo poema "Esta rua", de que cito 11
versos: "Esta rua te percorre/ e faz de teus passos exílio./ Esta
rua te caminha/ e vigia,/ define teus limites/ e espaços,/ e de tua
saudade/ te alimenta."
Quase no final do poema, que é
belamente longo, diz: "Vaga nesta rua a tua alma/ ao redor da
fogueira/ que te devora os ossos".
Além de sabedoria vocabular, revela o
estilo de Alexandre Marino uma extraordinária elasticidade rítmica.
Alguns de seus versos dão a impressão de que podem ser lidos ao
contrário ou tomados em qualquer ponto, pois o ritmo como que parte
dali e se integra em nova unidade. Atente-se para o sereno domínio
do poeta sobre seus símbolos, suas realidades, suas palavras.
O poeta multiplica os lugares do
mundo, já que dentro da casa há outra casa, e outra, e outra, com
outros quartos e incontáveis cômodos, entre corredores e labirintos
passagens subterrâneas numa completa reconstrução dos espaços de
ontem, que ainda são os espaços de hoje. Os poemas são todos
dedicados ao menino, o menino de ontem que não mudou e continua
vivendo o momento. Assim:
"Lá vai o menino
e o homem invisível
que o acompanha,
feito de sua própria sombra
a jorrar-lhe das entranhas."
Dois temas visíveis do poeta - o
menino e o espanto - poderia ser fixado num "espanto do menino",
diante das coisas todas, diante do preto velho mais feliz do mundo
que um dia não mais se achava lá. Diz o verso: "Não imaginava que
morrer fosse enorme."
Na realidade, "Arqueolhar" é uma
história do Brasil, com suas jabuticabas, seus palhaços, seus
circos, onde a trapezista flutua e os malabaristas fazem
malabarismos - e é, assim, a historia do País, a história de uma
infância, a história de um tempo, que o poeta levanta em versos,
numa luta pelo aperfeiçoamento de uma capacidade de percepção.
Para isto, precisa o poeta de uma
entrega total, absoluta, de si mesmo às palavras que viram versos,
uma entrega cromo a do sacerdote, como a do eremita. E precisa ser
forte para enfrentar a pedra, que lá está sempre, medida tranqüila
das coisas.
Eis o final de seu poema "Pedra de
amolar": "Um dia, nos escombros do futuro,/ em certo altar
abandonado,/ com paredes e entulhos/ de um alpendre, um terraço/
ossos, restos, rastros sobre a terra,/ irremediavelmente oculta/ ou
apenas insepulta,/ lá estará a pedra/ insone,/ a recordar, sem
saudade,/ um regato, um leito de rio,/ uma borda de serra."
Não hesito em colocar Alexandre
Marino, com este "Arqueolhar", entre os grandes poetas do Brasil. A
originalidade de seus temas, o bom e forte equilíbrio de seus
versos, seu grave e necessário respeito pelas suas memórias, por
inventar uma literatura para cada poema. Há um tipo de poesia que é
matéria verbal, vocal, oral, visível, signo, sinal, e é no ritmo que
a matéria se forma e ganha contorno. Fazendo poesia com palavras,
conscientemente com palavras, o bojo vocabular de Alexandre Marino é
de extraordinária riqueza.
"Arqueolhar", de Alexandre
Marino, é um lançamento da L.G.E Editora, de Brasília. Editor:
Antonio Carlos A Navarro. Capa de Rômulo Geraldino (Arte Contexto),
prefácio de Maria Esther Maciel e Floriano Martins, "orelha" de
Sérgio de Sá.
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Alexandre Marino
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