Antonio Olinto
A palavra da poesia
31.10.2006
Terá a palavra uma existência própria,
independente da idéia? Um poeta, amoroso de seu instrumento, diria
que sim. E teria a seu favor uma opinião muito antiga, de Dionísio
de Helicarnaso, que afirmou ser a linguagem "alguma coisa de
exterior à paixão ou à idéia que nela se manifestem, e como coisa
que pode ser manejada à parte e ter beleza própria, independente do
pensamento".
Séculos depois Mallarmé, cioso de que
a palavra é capaz de tudo, fez a apologia do valor musical da
palavra ("rependre à la musique son bien", no que foi seguido por
Verlaine: "De la musique avant toute chose"). Mallarmé insistia que
"as palavras podem criar uma realidade ou, pelo menos, uma realidade
superior".
Pode-se dizer que Sonia Sales, que
teve lançado este ano um livro de poesia chamado "Os dedos da
morte", com poemas em português e, na parte final do volume, os
mesmos poemas em espanhol ("Los dedos de la muerte"), chega a
valorizar suas palavras ao mesmo tempo em que busca firmar-se em
idéias, sendo a idéia da morte a que mais se apega às palavras, mas
ao mesmo tempo delas se afasta porque a simples idéia do fim não
cabe inteira nas palavras do dia-a-dia.
Em seu poema "Breve oração", por
exemplo, a idéia do outono surge como próxima de um fim e como que
foge da morte e ao mesmo tempo a busca: "As folhas caíram antes/ do
outono e a saudade, nem/ chegou a ser, mas os mortos/ estavam lá./
Frios e inconsoláveis".
No fundo, também o poeta busca
insuflar ritmos nas palavras, e o ritmo salva, o ritmo é a música
ínsita nas coisas que liberta o homem da angústia de todos os dias.
De vez em quando a poesia de Sonia Sales mergulha numa linha de
revolta, de certa maneira violenta: "Tenho medo:/ da noite sem fim./
Da tumba onde estarei/ exposta ao meu destino/ como carne devorada
por vermes." Logo em seguida: "De mim,/ um punhado de palavras/
aprisionadas em livros,/ jogados em algum canto/ de uma biblioteca
sem uso./ Poeira, lixo/ como tantos".
A beleza das palavras não se esconde,
mesmo quando o tempo as assalta. Acima de tudo, corre o tempo. E
nessa corrida pousa Sonia Sales, que solta estes versos: "O relógio
registra/ segundos, minutos, vidas./ Na Bósnia, no Kosovo, nas/
Ilhas Trindade, corre o tempo,/ impiedoso, sem se preocupar com o
muito/ que desejamos legar, os livros/ que ainda não fizemos, as/
saudades que certamente virão".
Pode-se perguntar onde estará o
"coração da matéria". Na aceitação ou na revolta? Sobre ambos, ergue
o escritor seus poemas, seus contos, suas análises, suas raivas e
suas fugas. Examinando as tendências da poesia de hoje, ponderou o
escritor mexicano César Fernandez Moreno que a crise de nosso tempo
está na falta de palavras, isto é, não sabemos o número suficiente
de palavras para chegarmos a entender as coisas.
Acrescente-se que, de acordo com
estatísticas em vários países, 50% da conversação normal das pessoas
compõe-se de apenas 69 palavras e que, dos mais ou menos seis
bilhões da população do mundo, quase três bilhões são analfabetos e
que mesmo a literatura mais banal e comum é leitura de minoria. Daí
a necessidade de insistirmos na palavra, que é a base do diálogo, do
pensamento puro e do texto escrito, seja poesia ou prosa.
Diante de uma poesia com ao de Sonia
Sales, há que louvar seu amor à palavra e o modo como se apossa dela
para levantar idéias em versos e buscar um entendimento do mundo,
inclusive num sonho de primavera: "Costuro estrelas/ brilhos e
vidrilhos./ Um alfaiate/ no anil sideral./ As andorinhas pousaram/
no bezerro de ouro,/ o vinho escorre da taça/ em chamas, mas em
segredo/ inventarei a primavera,/ cantarei no coral da igreja/
tocando meu violão, e usarei/ no domingo meu vestido azul,/
costurado de estrelas."
Para continuar e fazer mais do que no
passado, o poema pede à "indesejada das gentes", de que falava
Manuel Bandeira, para não vir já: "Não venhas já./ Voltarei à
infância, não/ temerei professores de/ matemática, serei campeã/ de
vôlei./ Escolherei o homem certo, que/ um dia será meu rei."
"Os dedos da morte", de
Sonia Sales, é um lançamento das Edições Galo Branco, sob a direção
de Waldir Ribeiro do Val. Projeto gráfico da autora. Capa e
contracapa: detalhes da pintura de Albert Dürer (1471-1528).
Prefácio de Hernâni Donato
Leia Sonia
Sales
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