Antônio Carlos Secchin
As Solas de Sol, de Fabrício
Carpinejar
As solas do sol, livro de estréia de Fabrício
Carpinejar, já no título nos projeta no âmago do paradoxo, ao unir o
mais rasteiro – a sola – ao mais elevado – o sol. Todavia, na lógica
própria ao poético, o último termo já se incrusta no seu oposto
(sola), dando a entender que cabe ao artista a elaboração de um
cosmo sem fronteira, onde categorias antinômicas convivam em amorosa
e densa tensão.
De modo esquemático, podemos vislumbrar, em nosso
país, dois roteiros palmilhados pela maioria dos jovens poetas. Um
deles, vinculado a uma espécie de desliteraturização do literário,
consiste basicamente, à sombra larga de Oswald de Andrade, em
desprover o discurso de certa ritualização
rítmico-melódico-metafórica, identificada a práticas supostamente
conservadoras do verso. Abre-se, por aí, o veio exploratório do
coloquial, do confessionalismo “realista” com subseqüente e
voluntária impregnação do prosaico, do trivial simples do cotidiano.
O outro caminho passa pela reliteraturização do verbo, manejado
então em sua vertente culta e reinserido num diálogo (no melhor das
vezes, crítico) com a tradição. O dado interessante, a meu ver, é
que tal diálogo não se cinge à esfera do literário, pois desdobra-se
num ostensivo espraiamento na direção de domínios paralelos, como a
música e, em particular, as artes plásticas. Daí advém, por tabela,
uma sofisticação referencial simetricamente avessa ao
confessionalismo semibruto da primeira tendência.
Carpinejar, seguramente, não pode ser filiado a
nenhuma tendência de primitivismo elocutório. A prática de As solas
do sol o vincula, antes, aos artesãos do verso – com traços, porém,
que desde logo o individualizam. Um desses é a radicalização do
processo metafórico, com seu conseqüente esgarçamento referencial.
Eis-nos à beira (ou no âmago) de um universo espessamente vocabular.
Talvez não seja pertinente indagar “de que mundo fala este livro?”,
como se houvesse tal mundo à parte da obra, do qual ele seria a rude
contrafação.
O mundo é o próprio livro, erguido à margem, ou
contra, as convenções naturalistas e firmado num pacto de
cintilações e belezas extraído de suas formulações intrínsecas, sem
estar a reboque de verdades que lhe sejam alheias. Movimento
inestancável de assédio ao indizível, que, paradoxalmente, se deixa
capturar em chispas de culminâncias da linguagem. Assédio, aliás,
embutido foneticamente no título (assolas) e projetado, de modo
ascensional, nas colinas (ou colunas?) que sustentam a obra. O mesmo
sentido de reversão de grandezas implícito em solas/sol reaparece no
périplo inverso a que somos convidados, partindo da primeira colina,
segundo a concatenação do texto, ou da décima, conforme propõe o
Índice.
Se a força da metáfora parece eclodir a cada passo
(“Os astros enfermos/ aguardavam em fila/ um leito no firmamento”;
“A roldana palitava/ a boca da cisterna/ e o pescoço da luz vestia/
o poncho do vento”; “Plumas pousavam/ como guardanapos/ nos joelhos
do mar”), assinalemos também, já agora na arquitetura geral da obra,
o destemor com que Fabrício encarou difícil e duplo desafio, o da
prosa poética em abertura de seção, e o do verso curto em seu bojo,
orquestrando um compasso de dicções paralelas ao longo de todo o
texto. “Tua companhia é o endereço da fúria”, diz-nos o poeta, em
frase que pode expressar bastante bem o potencial de insubmissão
inerente ao ato criador frente a versões cerceadoras ou
apaziguadoras dos vendavais da linguagem.
Abrir-se ao risco, à aventura, ao desconforto - eis a
que, sabiamente, nos convida a palavra de Fabrício: “Abandonar o
paraíso,/a única forma/ de não esquecê-lo”.
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