Fabrício Carpinejar
Alguns poemas
Adega do sono – poema 5
Dividias os gomos da fruta
em aposentos da casa.
A cortina do sumo
leveda o sol levantado.
O zodíaco do molde
supre o gérmen do quarto.
E o bafio estala
a lareira das esferas
na sala de estar
da semente.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Neve da Chama – poema 8
Enraizado no canto,
o cortejo de galos
separava a safra de corais.
Das quilhas coradas
das canoas.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Solidão a duas vozes – poema 8
Obedecia a rapidez do sangue.
Antes de apodrecer a luz,
engolia a altura da árvore.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Salmos do fogo – poema 9
O céu esférico,
cinzento.
Aves copiando o traçado
da migração,
o caule da borrasca.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Domingo
As garças capinavam
as águas.
A saliva das aves
movia o motor
do riacho.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Suicídio – poema 3 e 5
A vida amou a morte
mais do que havia
para morrer.
Apaguei os pensamentos
na espuma da pele.
Abandonar o paraíso,
a única forma
de não esquecê-lo.
“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)
Pronúncia
A palavra é falível
posta em outra boca:
o horizonte deitou
o fuzil dos pássaros.
Volta, pai, que a fundura
não está nos passos,
a tapera dispersa
a caça e o paradeiro
das pegadas.
A queda atalha a subida,
o homem permanece
uma pronúncia inacabada.
Tantas vezes caí
em teu lugar,
que descobri o inferno
ao repetir a salvação.
Tantas vezes caíste
em meu lugar,
que descobriste a salvação
ao repetir o inferno.
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2000)
Testamento
Sou também um livro
que levantou
dos teus olhos deitados.
Em tudo o que riscavas,
queria um testamento.
Assim recolhia os insetos
de tua matança,
o alfabeto abatido
nas margens.
Folheava os textos,
contornando as pedras
de tuas anotações.
Retraído,
como um arquipélago
nas fronteiras azuis.
Desnorteado,
como um cão
entre a velocidade
e os carros.
Descia o barranco úmido
de tua letra,
premeditando
os tropeços.
Sublinhavas de caneta,
visceral,
impaciente com o orvalho,
a fúria em devorar as idéias,
cortar as linhas em estacas da cruz,
marcá-las com a estada.
Tua pontuação delgada,
um oceano
na fruta branca.
Pretendias impressionar
o futuro com a precocidade.
A mãe remava
em tua devastação,
percorria os parágrafos a lápis.
O grafite dela, fino,
uma agulha cerzindo
a moldura marfim.
Calma e cordata,
sentava no meio-fio da tinta,
descansando a fogueira
das folhas e grilos.
Cheguei tarde
para a ceia.
Preparava o jantar
com as sobras do almoço.
Lia o que lias,
lia o que a mãe lia.
Era o último a sair da luz.
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2000)
Nenhuma ferida
Nenhuma ferida
separava teus pesadelos.
Quando vagaste em meia-idade
pela selva escura, fiquei
a conversar com tuas camisas,
aprumando boinas
que afogavam os cabelos.
Tinha sete anos ao certo
e uma lua vadia disputando
corridas comigo.
Fiquei a entreter
os tecidos alinhados,
como um exército em revista,
procurando convencer
uma peça ao menos
a delatar tua deserção.
Quando vagaste em meia-idade
pela selva escura, fiquei
alimentando o aquário
das gravatas.
Pedia privacidade às traças.
Vestia tua camisa,
copiando o ritmo
dos teus traços,
a respiração copiosa,
sendo meu próprio
e definitivo pai.
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2000)
Sem dono
(...)
Nossa coerência
é estar mudando.
A chama desmaiou
e a levamos nos braços.
Tivemos a coragem
de superar o começo,
não transformar a filiação
em mapa de guerra,
imitação da treva.
O percurso tem sentido
quando percorrido.
Do resumo das veredas,
reverdece o sumo
de ter colhido
o sabor da vertente.
Nossa amizade
é mais um gole da gaita,
um golpe no tambor.
Nossa amizade
é estar névoas adiante
do que somos.
Só é mortal
o que não vimos.
Despeço-me do passado
como um cavalo sem dono.
Não devo conselhos,
não devo a franqueza
das pausas,
a serenidade dos escolhos,
não devo a força
de minha fraqueza.
Mergulho os calcanhares
a empurrar
a barca do ventre
e circundas o vazio,
os ciclos do som,
conciliado com a verdade,
pai maduro de minha escolha,
navegando
a paternidade das águas.
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2000)
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