Antônio Carlos Secchin
Odes à morte para consagrar a vida
Poemas reunidos,
de Ivan Junqueira.
Editora Record, 400 páginas.
R$ 27
Fragmentos, destroços, cinzas e naufrágios. É dessa
matéria mutilada, perecida ou irrecuperável que se tece a poesia de
Ivan Junqueira, conforme o consenso da alentada fortuna crítica que
encerra o volume de seus "Poemas reunidos". Nascendo com "Os mortos"
(1964), prosperando com "A rainha arcaica" (1979) e "O grifo"
(1986), e culminando em "A sagração dos ossos" (1994), os 127 poemas
enfeixados nesta coletânea testemunham, de um lado, a parcimônia de
uma produção regida por um rigor extremo, e, de outro, a fidelidade
a formas e temas obsessivamente reelaborados ao longo de décadas
dedicadas à reflexão sobre o poético a partir das mais diversas
angulações: não apenas a do criador, mas as do ensaísta e do
tradutor.
Ao crítico atento à produção contemporânea e autor de
estudos fundamentais sobre Vinícius e Dante Milano alia-se o
tradutor de Baudelaire, Eliot e Dylan Thomas, e ambos, crítico e
tradutor, confluem para a figura do poeta, enriquecida, portanto,
pela escuta atenta de tantas dicções diferentes da sua, e apta a
elaborar o próprio discurso através de um diálogo vivo com as vozes
que a precederam. Sim, porque a obra em progresso de Ivan não deixa,
de certo modo, de ser uma "obra em regresso": regresso às fontes
primordiais do lirismo (como a notável série de "A rainha arcaica"),
de par com um inegável fascínio pelo mito no que ele possa conter de
imemorialidade; abundante utilização de formas fixas (poemas em
tercetos, quadras, quintilhas, em rimas soantes ou toantes) -
embora, a rigor, aqui talvez não se deva falar em "regresso", uma
vez que tal prática nunca foi de fato banida da produção dos mais
importantes poetas brasileiros de nosso século.
Conhecer a tradição não para perpetuá-la, mas para
auscultar o que nela pulsa para além de sua paralisante configuração
totêmica, eis o desafio a que se lançou a poesia de Junqueira. Os
contestadores dessa vertente poderiam argumentar que, com
freqüência, se torna indiscernível a fronteira entre o passado como
referência e o passado como reverência. Assim , o (inegável) tom
"solene" de Ivan (adepto de um léxico descoloquializado) perpetuaria
uma linguagem já demolida pelo modernismo de 22. Ora, o caminho de
22 também se ritualizou e gerou jurisprudência - a tal ponto que o
mimetismo de seus traços mais visíveis possibilitou o surgimento de
uma legião de poetas cujo pressuposto era o desconhecimento de tudo
que a precedeu, como se a ignorância do verso medido representasse
algum respaldo de qualidade para o verso livre, ou como se toda a
noção de moderno se esgotasse na prestação de um serviço poético
obrigatório confinado às fórmulas das "antifórmulas".
Morte, amor e arte se constituem no núcleo de onde se
irradia toda a perquirição existencial da obra de Ivan. Difícil
divisar um poema em que, autônomos ou interligados, tais temas não
compareçam. Em outro texto, tive ocasião de salientar que na poesia
de Junqueira o sentimento amoroso não é trégua apaziguadora, mas
território que conserva a crispação de toda a vida vizinha, com suas
rações cotidianas de perda, miséria e dor; apenas em parcos momentos
extáticos o amor cintila sobre a contingência humana.
À arte caberia o movimento de "salvação" do precário
- ma non troppo, sem o conforto das certezas que este
herdeiro (desconfiado) da vertente simbolista faz questão de pôr em
xeque. A arte musical, tão celebrada em seus versos, é sinônima de
delicadeza e harmonia, promessa de um mundo sem fissuras, cujo
contraponto formal é o sofisticado jogo de assonâncias e demais
recursos fônicos a serviço de uma sintaxe que também se desdobra em
períodos complexos - num fluxo de todo oposto à noção de poesia como
espasmo ou lampejo ocasional.
A diferença é que, subvertendo a ortodoxia de um
certo simbolismo, em Ivan a criação não garante perpetuidade: a arte
pode perecer, e restar, em seus restos, ironicamente, a matéria que
ela não logrou perenizar, a exemplo da resistência, mineral e
literal, dos ossos "Foram damas tais ossos, foram reis/ e príncipes
e bispos e donzelas/ mas de todos a morte apenas fez/ a tábua rasa
do asco e das mazelas./ E ali, na areia anônima eles moram. /
Ninguém os escuta. Os ossos não choram".
Guiados pelos títulos dos livros, alguns consideram
Ivan Junqueira uma espécie de "poeta da morte", numa versão
atualizada do imaginário macabro de Augusto dos Anjos. Não me parece
correta a aproximação. Enquanto no autor paraibano salienta-se um
comprazimento com o destino irreversível da matéria orgânica,
descrito em minúcias que muitas vezes se limitam às mutações físicas
dos fenômenos observados, perpassa a obra de Ivan um obstinado
lamento frente à finitude, e um desesperado anseio - mesmo vão - de
vencê-la.
Nele, falar tanto da morte é maneira avessa de, nesse
espaço fascinantemente repulsivo, prospectar o seu antídoto.
Torna-se premente indagar pelo que prospera para além do corpo
extinto: "escuta a voz escura das raízes/ (...) limalha/ fina do que
é findo e ainda respira"; "gazela e touro, na parede impressos, / em
pedra se convertem, quase eternos"; "a condição do ser é não ser
término".
Na capa dos "Poemas reunidos", uma árvore ressecada
se ergue contra o céu sem nuvem, em desolada e inóspita paisagem.
Esse império do árido não impede que, entre ramos retorcidos, se
perceba uma tênue e tenaz folhagem. Exata imagem da obra poética de
Ivan Junqueira, que, sob a visível sagração da morte, deixa aflorar
a consagração da vida.
ANTONIO CARLOS SECCHIN é ensaísta, poeta e professor
da Faculdade de Letras da UFRJ
Leia a obra de Ivan Junqueira |