Hildeberto Barbosa Filho
Antonio Carlos Secchin:
leitura e construtivismo no espaço poético
Em Todos os ventos (Nova Fronteira, 2002), o poeta
carioca Antonio Carlos Secchin, reúne os momentos principais de sua
experiência poética, na medida em que, aos inéditos que emprestam o
título à coletânea, juntam-se poemas de livros antigos, como Ária de
estação e Elementos. O fato interessa tanto ao crítico quanto ao
leitor comum, uma vez que reuniões desse tipo permitem uma visão de
conjunto de toda uma trajetória poética, exposta, portanto, em seus
contornos gerais e em suas características específicas.
São três décadas de poesia, num labor silencioso e
solitário, pois Secchin vem-se destacando no terreno do ensaio e da
crítica sem expandir de maneira mais visível a outra dimensão de sua
praxis intelectual e criativa, isto é, o desafio mais visceral da
elaboração poemática. Daí porque a pertinência de uma publicação
como essa.
À parte outros aspectos presentes em sua poética,
gostaria de tocar em dois pontos que me parecem fundamentais às
exigências de uma compreensão crítica. Pontos que recorrem ao longo
do tempo, e, enquanto recorrência, conseqüentemente marcas
irredutíveis de sua dicção lírica.
Em primeiro lugar diria que Antonio Carlos Secchin é,
por excelência, um daqueles que realizam uma poética da leitura, ou
seja, uma poética que tem no referencial literário, insumos básicos
de motivação. Uma poética, portanto, dialógica, apropriativa, em que
valores temáticos e procedimentos técnico-formais e estilísticos são
como que reativados, ora na perspectiva paródica do olhar irônico,
ora naquela acepção de paródia como canto paralelo. Daí,
internamente vai-se compondo um ideário poético que, a partir da
irreverência para com alguns modelos e da admiração para com outros,
tende a apontar, numa espécie de curiosa metalinguagem, os traços
essenciais de um paradigma pessoal no âmbito da expressão lírica.
No poema Cisne, por exemplo, não somente o paratexto
da dedicatória à memória de Cruz e Souza, em especial, mas sobretudo
o conteúdo do poema fazem emergir, do passado literário, a voz
cantante do poeta simbolista, ao mesmo tempo em que se sinaliza
ironicamente para o Parnaso. Veja-se o primeiro quarteto:
Vagueia, ondula, incontrolado e belo,
um cisne insone em solitário canto.
Caminha à margem com a plumagem negra,
em meio a um bando de pombas atônitas.
O gesto de adesão a certos recortes estilísticos
resulta visível no caso de A um poeta, assim como a veia irônica –
nota bem peculiar à linguagem de Secchin – se explica de forma
lúdica e dialógica no soneto Trio. Lá, surgem as figuras
emblemáticas de João Cabral e de Drummond, numa co-relação de pares
distintos, porém, algo semelhantes (“E há poemas muito impuros,/onde
não vale a demão./Deles brotam versos duros,/poema para ferro e
João”); aqui, repõe-se em cenas a trindade parnasiana – Olavo Bilac,
Alberto de Oliveira e Raimundo Correia – alertando-se para o beco
sem saída de sua estreita concepção formal. Observem-se os dois
tercetos:
Jubiliosos na métrica do próprio nome,
aprisionam em seus versos as pombas e as estrelas,
apostando que em jaula firme e decassílaba
não haverá qualquer perigo de perdê-las.
Adestram a voz do verso em plena luz do dia.
À noite a fera rosna a fome da poesia.
Em segundo lugar, deve-se associar aos trâmites
possíveis de uma poética da leitura naquilo que, no exemplo em
pauta, possui de distanciamento irônico e de compleição erudita, o
registro seminal de uma atitude construtiva perante o uso dos
vocábulos.
Desde os primeiros versos (“O engenheiro
debruçado/sobre o horizontal das praias/ordena o ritmo das
ondas/constrói os vértices do verde”), do poema intitulado A João
Cabral, de Ária de estação(1969-1973), passando pela série cerrada
de Elementos (1974-1983), e culminando na fase atual de sua poesia,
o autor se exerce dentro daquela vertente a que alguns identificam
como a dos lógicos-matemáticos em contraposição aos
mágicos-delirantes, especialmente pelo que revela de cuidado e de
senso de medida e de adequação no trabalho com a linguagem, quer no
âmbito do ritmo do verso, sejam os versos isométricos sejam os
versos livres, quer no espaço semântico dos imagens, não raro
esculpidas dentro de um viés plástico e pictórico onde ecoa a matriz
cabralina, sem abafar, contudo, o brilho da voz pessoal.
Se o construtivismo se cristaliza à sombra do modelo
cabralino no poema aludido, numa espécie de gesto especular que
descortina um credo poético, vai, no entanto, além, demarcando a
dicção subjetiva de um texto como É ele! , que abre a coletânea.
Vejamos:
No Catumbi, montado a cavalo,
lá vai o antigo poeta
visitar o namorado.
Não leva flores, que rapazes
raro gostam de tais mimos.
Leva canções de amor e medo.
Cachoeiras de metáforas,
Oceanos de anáforas, virgens a quilo.
Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro
dois poemas, um cachimbo e um estilo.
Este mesmo zelo, esta mesma propriedade, este mesmo
sentido de depuração e de combinação das palavras atento, quase
sempre, ao efeito poético inusitado e surpreendente, vai-se
modulando ao longo dos poemas em versos singulares, a exemplo de:
“(...) uma escrita/é uma escuta”, de Cinco; “poemas são palavras e
presságio/pardais perdidos sem direito a ninho”, de Arte; “(...)
Tudo está mais além e aquém do que se fala”, de A luz maciça; “(...)
A casa só se acaba quando morrem/os sonhos inquilinos de um homem”,
de A casa não se acaba; “(...) todos os medos são pânicos(...) todos
os gozos são santos” de À noite, e “(...) Seu nome, marcado em minha
boca/como c polpa de uma pêra”.
Com orelha de Alfredo Bosi e prefácio de Eduardo
Portella, a poesia reunida e selecionada de Antonio Carlos Secchin,
para além destas tópicas abordadas, tópicas que poderiam se espraiar
por ingredientes retóricos e temáticos como a ironia, a tradição, a
ruptura, a metalinguagem, o paratexto, enfim, por todo o complexo
permitido por uma expressão lírica moderna, intervém, direta ou
indiretamente, na arena multifária de poesia brasileira
contemporânea, no sentido de resgatar e firmar a força do discurso,
o logos de uma concepção poética em que o elemento racional não
elide a componente afetiva.
De outra parte, Todos os ventos, em que pese a
inclinação construtiva da linguagem, parece sinalizar não somente
para todas as possibilidades do poético que Antonio Carlos Secchin
vem modulando em torno de sua experiência individual, mas também
para toda a natureza plural que a palavra poética pode conter. Todos
os ventos, a experiência toda; todos os ventos, todos os caminhos!
Leia
a obra de Antonio Carlos Secchin
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