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            Antonio Carlos Secchin 
 
            
 A combustão de existir
 
            
 
 
            A poesia de Ronaldo Costa Fernandes se tece num mundo 
            de asperezas e sob o signo de contínuos descentramentos. No 
            (renegado) livro-folheto de estréia Urbe (1975), já se desenhava uma 
            tensa e hostil relação do poeta frente ao espaço da metrópole, 
            vivenciado como fraude e clausura. Nas coletâneas seguintes – 
            Estrangeiro (1997), Terratreme (1998) e Andarilho (2000) – 
            desdobra-se a imagem de um poeta em trânsito, através de sucessivas 
            viagens cujos pontos terminais, em vez de representarem a conquista 
            de um paraíso apaziguador, impedem a consolidação de qualquer 
            esperança, ao deixarem patente a inutilidade da travessia (“Nenhuma 
            França me fará feliz”). Este Eterno passageiro, que se insere na 
            trilha aberta por seus predecessores, desde o título se apresenta 
            com refinada ambigüidade: cada um dos dois termos pode ser lido como 
            substantivo ou adjetivo do outro, e ambos ainda podem ser 
            considerados adjetivos simultâneos de algum elíptico substantivo. 
            O leitor há de ter percebido o lapso de 22 anos 
            decorrido entre a estréia e a retomada da criação poética de 
            Ronaldo: nesse longo intervalo, ele construiu sólida carreira como 
            romancista, tendo sido contemplado, inclusive, com o prestigioso 
            prêmio Casa de Las Américas. A poesia, porém, era uma espécie de 
            hóspede clandestina de sua prosa, aguardando o momento de abrir 
            passagem e retomar um lugar que era seu na origem. As recentes 
            publicações no gênero confirmam que, finalmente, a escrita de 
            Ronaldo optou por dividir-se (ou multiplicar-se) entre a ficção e o 
            lirismo, abrindo-se ainda à arguta reflexão ensaística de O narrador 
            do romance (1996). 
            Se a inflexão explicitamente engajada foi a tônica de 
            Terratreme, os demais títulos privilegiam uma atitude que filtra o 
            social pelo olhar impactado do sujeito lírico que o sofre. O mundo, 
            o outro, lá estão, não como realidade alheia ou alienada, mas 
            transformados em dádivas ou dores agregadas ao corpo do poeta. 
            Eterno passageiro é, em Ronaldo, mais uma etapa conseqüente desse 
            processo de não estetizar a brutalidade da matéria-prima da 
            existência. Peles e corações ressequidos, trastes, objetos banais, 
            ossos, vísceras, besouros: tudo cabe numa poesia que devolve e 
            revolve, com a força de sua voluntária crueza, a impureza da 
            aventura de estar vivo. A “combustão de existir”, referida no belo 
            texto “Imaginações violadas”, é o processo que sustenta, não se sabe 
            ao certo com que propósito, as máquinas humanas, navegantes 
            náufragas à deriva da vida. 
            Os cinqüenta e sete poemas do livro operam num 
            registro lingüístico bastante despojado, mas não necessariamente 
            fiel à ortodoxia da linhagem construtivista. Eterno passageiro 
            embarca ao largo de algumas das tendências hegemônicas de nosso 
            lirismo contemporâneo. Nesse sentido, pode-se dizer que o 
            “andarilho” Ronaldo Costa Fernandes, “estrangeiro” no banquete de 
            confrarias poéticas ostensivamente (auto-)festejadas, percorre 
            caminhos paralelos ou marginais a vários roteiros previamente 
            sinalizados para o aplauso crítico: o exibicionismo erudito, a 
            intertextualidade para poucos, o minimalismo, o virtuosismo 
            conservador e bem-penteado ou – seu oposto, idêntico pelo avesso – o 
            beletrismo da rebeldia, previsivelmente “desconstrutor”. O poeta, 
            conforme registra no texto “Para Nauro Machado”, prefere tratar o 
            “poema como búfalo não domado”. É ler peças como “Outubro”, “Poema 
            contra a cremação”, “Avenida Beira-mar, 1960”,“Deserto” para nos 
            convencermos do acerto dessa opção, que nos brinda com uma poesia de 
            voz e vôo próprios.
 
 
            
  Leia a obra de Ronaldo Costa Fernandes
 
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