O Viúvo, um acontecimento literário
Publicado, em 2005, por uma editora
de fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, é claro que este
livro, uma das poucas obras-primas do romance brasileiro deste
início de século XXI, praticamente passou despercebido do
leitor-consumidor. Azar dele, pois, se se fiar nas listas dos
mais vendidos das revistas semanais que, como se sabe, só
reconhecem autores e livros publicados por grandes editoras, vai
continuar a ler muito lixo cultural
«O Viúvo», de Ronaldo Costa
Fernandes, é um romance surpreendente. As frases curtas,
diretas, rápidas e cortantes reconstituem um clima pesado e
sombrio à Fernando Pessoa em «O Livro do Desassossego»,
atribuído ao heterônimo Bernardo Soares, em que o estado mental
de quem escreve transborda para a palavra.
Não é o mesmo estilo em que
oxímoros e frases paradoxais permeiam o texto. Além disso, o
português que usa é o do Brasil de hoje, sem floreios, sem
gírias ou palavras de baixo calão. É como se Machado de Assis
tivesse renascido na segunda metade do século XX e, incorporando
todas as conquistas literárias das últimas décadas, renovado o
idioma e produzido este texto que é o depoimento apurado de um
homem atormentado. Costa Fernandes faz exatamente isso: dá um
salto para a linguagem moderna, mas sem perder a raiz brasileira
que, mais ao fundo, ainda é portuguesa.
Publicado, em 2005, por uma
editora de fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, é claro que
este livro, uma das poucas obras-primas do romance brasileiro
deste início de século XXI, praticamente passou despercebido do
leitor-consumidor. Azar dele, pois, se se fiar nas listas dos
mais vendidos das revistas semanais que, como se sabe, só
reconhecem autores e livros publicados por grandes editoras, vai
continuar a ler muito lixo cultural, embora não se negue que são
igualmente publicadas muitas obras importantes.
Costa Fernandes publicou, entre
outros livros, os romances «Concerto para flauta e martelo»,
finalista do Prêmio Jabuti de 1998, da Câmara Brasileira do
Livro, e «O morto solidário», que obteve o Prêmio da Casa de Las
Américas, de Havana, ambos editados pela editora Revan, do Rio
de Janeiro. Conquistou ainda os prêmios de Revelação de Autor da
Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA) e o Guimarães
Rosa. E, por nove anos, dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros
em Caracas.
Na apresentação que fez para «O
Viúvo», Lídia Cademartori compara o romance à «Angústia», de
Graciliano Ramos, e o faz com muita pertinência e acuidade. De
fato, é o mesmo clima abafado, o mesmo método introspectivo.
Em «Angústia» (1936), o personagem
Luís da Silva analisa, até à exaustão, as causas que o levaram
ao crime, “conjugando a visão iluminada de Dostoievski com as
teorias criminologistas de Lombroso, em ambiência
verdadeiramente freudiana”, segundo a lúcida análise do
professor Fernando Cristóvão, da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, em História da Literatura Brasileira,
direção de Sílvio Castro, vol. III (Lisboa, Publicações Alfa,
1999)
Em «O Viúvo», obviamente, as
teorias lombrosianas não aparecem, superadas que foram pelo
tempo, mas o ambiente claustrofóbico persiste, ainda que, ao
contrário de «Angústia», não ocorra durante a narrativa nenhum
crime, mas apenas a vontade de perpetrá-lo.
O que se percebe é que o processo
de esquizofrenia, que parece acelerado no narrador, começa a
levá-lo a imaginar a prática de um crime. “Por que tenho vontade
de matar D. Benedita? O que ela me fez? Talvez fosse melhor
mudar a pergunta: o que ela representa para mim e que quero
eliminar da minha vida?”, questiona o narrador, um professor de
universidade perseguido pelo remorso da traição, consumado com
uma garota de dezoito anos num quarto de hotel, enquanto a
mulher agonizava numa doença terminal.
Em seguida, volta atrás: “Mas não
vou matar D. Benedita. Ela mesma vai murchar, sem seiva, sem
adubo, sem flor”, prevê para a velha empregada doméstica que,
diariamente, cuida de sua casa, “herança” de seu casamento com a
falecida Lídia. Talvez se se livrasse da velha empregada,
livrar-se-ia também da imagem da falecida e de tudo que a faz
lembrar, pois, afinal, “cada passo de D. Benedita no corredor
parece que vai dar no quarto onde está a moribunda”.
Culto, o professor compara-se ao
sinólogo Peter Kien, personagem de Elias Canetti em «Auto de Fé»
(1936), mas sente uma diferença: seus livros não falam com ele,
“são arredios, não se mexem, lápides de papel, soldadinhos de
papel com o bucho cheio de letras”.
Mas, se comparado com o professor
universitário sul-africano de J. M. Coetzee em «Desonra» (1999),
o professor de Costa Fernandes é um
personagem literário mais bem estruturado, interessante e
marcante, que, afinal de contas, discute questões que estão
presentes no dia-a-dia do brasileiro. Ou, pelo menos, do
brasileiro de cultura. É, ao mesmo tempo, alguém assim como
Mersault, personagem de «O Estrangeiro» (1942), de Albert Camus,
um homem que simboliza o vazio moral de nosso tempo. E, nunca
como agora, sente-se tanto esse vazio moral no Brasil.
Ao conhecer Fernanda, sua aluna,
casada e mãe de filhos, que voltara à universidade porque também
precisava falar de Álvaro de Campos com alguém, o professor é
perseguido outra vez não só pelo remorso da traição à mulher,
agora morta, como fisicamente pelo marido traído. Tudo,
praticamente, começa (ou recomeça) quando discute com Fernanda a
frase de Ginsberg, que dizia que toda vez que lia Pessoa, achava
que ele, Ginsberg, era melhor que Pessoa, e que fazia “a mesma
coisa de modo mais extravagante”, talvez, apenas porque Pessoa
era de Portugal e ele, Ginsberg, da América, “o maior país do
mundo”.
Que Ginsberg seja assolado por um
sentimento etnocêntrico que o leva a se achar superior a Pessoa
apenas porque nasceu no “maior país do mundo”, compreende-se.
Que o obtuso Bush queira impor suas idéias de mundo a um país do
Oriente Médio, como o Iraque, admite-se, à falta de outra
alternativa, já que garantir o abastecimento de petróleo é
fundamental para que o estadunidense continue a levar a vida de
desperdício que leva.
Mas, que o professor de poesia de
Coetzee, o autor Prêmio Nobel de 2003, publicado no Brasil pela
Companhia das Letras, de São Paulo, seja hoje mais conhecido do
leitor brasileiro, do que o professor de poesia de Costa
Fernandes, só se pode atribuir à submissão intelectual e ao
servilismo abjeto ao que vem de fora da maioria dos editores
brasileiros.
Que um país periférico não seja
capaz de reconhecer os seus melhores autores, isso é sintoma de
que a nação já entrou em acelerado processo de desintegração. E
por isso seu futuro se desenha duvidoso. Infelizmente.
O Viúvo, de Ronaldo Costa Fernandes. Brasília: LGE Editora,
2005.
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* Adelto Gonçalves é doutor em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:
adelto@unisanta.br