Astolfo Lima Sandy
Casinha de bonecas
Eu sabia do
esconderijo de Bebel, mas fingi que não. Mamãe, logo que recolheu a
maninha, trancou-se no quarto com papai e lhe contou tudo. O velho
saiu de lá furioso, deu socos na mesa e depois me chamou, para
investigar se eu ocultava alguma coisa. Apertou meu pulso, me olhou
longamente e exigiu que lhe contasse toda a verdade. Eu disse sem
pestanejar que não sabia de nada, puxei meu braço e fugi.
Agi assim para
proteger minha irmã. Bebel está na casa dos trinta, porém sua
cabecinha é de uma criança. Ultimamente, sempre que o dia amanhece,
ela corre com seu passo bambo, se mete no vestido branco de mamãe e
fica na janela olhando a rua. Quando sumiu só conseguiram localizar
a danadinha tarde da noite. Vinha suja e descabelada. Um vendedor de
flores foi quem a viu no casarão abandonado, brincando com bonecas.
Meu pai é
violento e não perdoaria se descobrisse meus segredos. Ele ainda não
se livrou da mania de julgar que somos todas estúpidas. Eu, por
exemplo, tenho doze anos e penso como adulta. Bebel é o contrário,
mas nos damos muito bem. Aprendo com ela certas coisas que só mesmo
uma pessoa de mais idade pode ensinar, e ela, comigo, tudo aquilo
que mamãe não quer que a irmãzinha entenda. Acho que a gente se
completa.
Os olhos de
Bebel brilham iguais aos meus, quando estamos as duas em frente à TV
e assistimos às cenas mais picantes de uma novela. Ela também fica
trêmula ao deslizar a mão entre as pernas, deixando escorrer uma
baba grossa pelo canto da boca. A única diferença é que sei me
controlar: corro para o quarto, apago a luz e permaneço debaixo dos
lençóis imaginando sonhos que papai nem desconfia.
Bebel ainda é
meio tola em certas coisas. Nem sabe falar direito. Pronuncia apenas
uns grunhidos que só eu sou capaz de compreender, porque aprendi a
ler em seus olhos os desejos e desenganos; separar no tom desses
gemidos os espantos e as alegrias. Ela confia em mim como se eu
fosse a sua própria cabeça. Não larga do meu pé. O tempo todo atrás:
“Dá, dá, dá...”
Conduzo Bebel
diariamente até o sótão, abro o baú que só eu sei onde se esconde a
chave e deixo que a mana remexa em tudo. Fico olhando enquanto ela
se veste de branco diante do espelho quebrado, passa gel nos
cabelos e pinta os lábios de batom. Adoro quando ela abre aquele
sorriso inocente e tenta calçar os saltos altos que mamãe não usa
mais. Gosto de ver Bebel caminhar com seu passo torto, cair, rolar
pelo chão até compreender que precisa usar as próprias pernas. Quem
não me conhece é de pensar que eu não presto. Mas se engana. A nossa
amizade fica melhor assim. Bebel adora que seja assim. Às vezes ela
passa a mão pesada sobre meus cabelos e me beija a face com seus
lábios pegajosos.
Acho bárbaro
ver Bebel se debruçar na janela, para aguardar que o moço da casa em
frente atravesse a rua. Toda vez que isso acontece ela bate palmas
com aflição, rosna feito uma gata em cima do telhado e deixa escapar
mais saliva pelo canto da boca. Se ele acena para nós, minha irmã
fica agitadíssima, coça a cabeça sem parar e repete muitas vezes a
mesma lengalenga: “Dá, dá, dá...” Uma vez esse rapaz piscou um olho
para nós e ficou na porta de sua casa, acenando. Acho que mamãe
percebeu, porque logo nos chamou e repreendeu só a mim. Disse que o
moço tinha débitos com a justiça e que era bem provável que usasse
drogas; achava melhor não darmos cabimentos a ele. Ah, mamãe, mamãe!
Sempre dependente do papai. Até o seu modo de falar, agora, é uma
cópia perfeita daquilo que ele costuma dizer. Reparando melhor, até
a cara dos dois está parecida. Também não é de se admirar: vivem no
maior amasso. Coisa mais ridícula, meu Deus, um casal de
velhos namorando! Ela pensa que eu não sei o que fazem quando finjo
que vou para o colégio e fico trancada no sótão com Bebel; que não
ouço seus gemidos.
Mas, no fundo,
penso que mamãe só falou essas coisas todas do nosso vizinho porque
não gosta que eu desperte em Bebel aquilo que julga prejudicial para
uma mente despreparada. Entende que é perversidade eu alimentar
certos delírios da maninha. Faço que escuto, mas ajo mesmo é de
acordo com o que penso. É muito legal ver Bebel se sentindo mulher,
vestir a calcinha pelo avesso, passar blush nas sobrancelhas, tudo
de uma forma muito natural. Vibro ainda mais quando o rapaz de quem
já falei olha diretamente para mim e sorri. Acho lindo o seu olhar
sonhador, daí que detesto quando teima em colocar aqueles óculos
enormes, escuros, sem graça nenhuma. Ele tem mais que a idade de nós
duas juntas, mas é um homem muito bom. Há um tempo atrás ele disse
que, se fosse do nosso interesse, a gente podia brincar de bonecas
em sua casa. Alertou sobre o casarão desabitado, que era muito
perigoso, e pediu apenas que eu não comentasse o assunto com mais
ninguém.
Topei na hora a
proposta porque vi que era ótimo nós termos mais um participante
nessas distrações. Meu único medo é de que descubram lá em casa o
novo esconderijo e venham brigar com o nosso amigo. Papai – como é
de costume, aliás – anda cada vez mais bravo. Ontem caminhava de um
lado para outro como se procurasse alguma coisa; cochichou pelos
cantos com mamãe e depois o encontrei calibrando a velha espingarda
de caça.
Também ando
bastante ansiosa nesses últimos dias. Agora, quando as brincadeiras
acontecem, eu sou sempre a filha e Bebel é a mãe. Do mesmo jeito que
se faz numa casinha de bonecas, com a diferença de que, na nossa, as
pessoas se mexem de verdade e todas têm alma. O moço pega Bebel pelo
braço e seguem até o quarto dele. Tudo como na vida real. Os dois
caem na cama, se cobrem com o lençol, enquanto eu fico na sala vendo
um filme na TV e comendo pipocas. Depois ele vem, me põe no colo,
acaricia minha nuca e me deixa toda arrepiada. Ele garantiu que hoje
iremos trocar os papéis: Bebel será a filha...
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