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Astolfo Lima Sandy

 

Meu exercício de estilo

 

O surrealista francês Raymond Queneau não tinha muita projeção até lançar em 1959 o livro Zazie no Metrô, quando passa a ser cultuado como um autor genial. E veja que, bem antes, em 1947, já havia publicado Exercício de Estilos, um livro interessantíssimo em que descreve uma cena comum, ocorrida num ônibus, de 99 formas diferentes. Em Zazie, uma garota percorre Paris, de táxi, enquanto partilha a experiência de personagens como o próprio taxista, uma viúva e um cabeleireiro. Os efeitos mais originais dessa obra ficam por conta do lance poético e, ao mesmo tempo, divertido; uma das características do autor – ressalte-se. O livro, para quem não se liga nessa jogada de melhores disso e daquilo, está na relação dos 100 melhores romances do século - com justiça, creio –, que foi publicada pela Folha de São Paulo e transcrita em Kromus & Kronópius, minha modesta revista literária. Outros poetas também se deram muito bem usando temas ligados aos meios de transportes: TAXI, METRÔ, ÔNIBUS. Faltaria apenas explorar MOTO-TÁXI e TOPIC.

Ao ler os dois livros de Queneau, pensei numa brincadeira para espantar o tédio em uma mormacenta tarde de segunda-feira, quando apenas o gato de estimação da mamãe me espreitava sobre o crochê que ela tecera até bem pouco, enquanto recordava o passado, e agora vencida, descansa na cama do quarto ao lado. O mote de percorrer Paris em um táxi, num autêntico roteiro sentimental, cheio de símbolos, recordações do passado, me fez lembrar dois fatos relacionados ao assunto: um poema que circulou por aqui com relativo sucesso (dizem que um plágio mal disfarçado) e o dia em que fui pegar minha prima Zuleide lá nas proximidades do North Shopping. Ela, embora já um tanto coroa, vinha a Fortaleza pela primeira vez e seu grande sonho era conhecer o Mar. Desceríamos os dois, de táxi, pela Bezerra de Menezes, rumo à praia do futuro, e eu lhe mostraria, durante o percurso, alguns lugares de minha infância e adolescência numa Fortaleza que ainda se embalava ao som dos Beatles e de Roberto Carlos.

Se eu quisesse apenas fazer um exercício de estilo ou uma adaptação fajuta da obra de Raymond Queneau, usaria como cenário para essa divagação a própria cidade de Paris, embora ficasse algo artificial, já que só a conheço através de livros e postais. Meu interesse, no entanto, era ver como ficaria uma composição inspirada em dois livros geniais, na ótica satírica de um escritor autônomo. Daí resolvi que o meu relato teria como cenário a festiva cidade onde resido, por que não? Afinal temos muito em comum: Paris é a cidade Luz, Fortaleza a Terra do Sol; eles têm a sua torre Eiffel, nós a do canal 10; O Champs Elysées é uma referência dos franceses, a Bezerra de Menezes a nossa maior via de acesso ao centro cultural da província; o parisiense possui teatros magníficos, afamados museus e monumentos que são verdadeiros patrimônios da humanidade, nós temos o Centro Dragão do Mar e cercanias: de um lado a Biblioteca Estadual, com seu precioso acervo, do outro o velho casarão que abrigava até comecinho dos anos 80 o cabaré do Zé Tatá, uma espécie de Madame Satã cearense, tipo bom de briga e que deu nome ao viaduto que hoje corta a Sena Madureira (Tatazão), proximidades da 10a Região Militar, antigo Forte onde tudo começou. Temos ainda o secular prédio da Alfândega, mais à frente, todo em pedra, erguido sob fogo e chibata pelos escravos do Império. Outra referência obrigatória é a telúrica ponte dos ingleses, também conhecida como metálica, palco de pitorescas histórias em um passado já distante e que atualmente acolhe os poetas e desocupados que vão contemplar o mais sublime pôr-do-sol da terra de Iracema. Assim como não devemos esquecer o prédio da Capitania dos Portos, em estilo colonial; os antigos armazéns de couros e de utensílios náuticos, os casarões que serviram de sede para alguns Consulados, agora simetricamente perfilados, coloridos, feito uma gravura de Vicente Leite, e por onde, antigamente, trafegava o prestigiadíssimo bode que tanto tem inspirado os cronistas que abrilhantam com suas presenças e verve nossos grêmios e academias. Quanto aos povos que habitam as duas metrópoles, nitidamente levamos vantagens. O nosso é hospitaleiro e bem comportado. Forrozeiros inveterados que somos, temos merecido a admiração de visitantes dos mais diferentes lugares. Nossos humoristas satisfazem ao mais exigente paladar, as graciosas menininhas são bem treinadas e batalham o pão nosso com toda dignidade na orla marítima, os taxistas que por aqui circulam são polidos e bons no volante, juntamente com os topiqueiros voadores, verdadeiros Émersons Fittipaldis encurtando distâncias, cruzando essa loura e desposada de norte a sul, fortalecendo o turismo e a renda per capta da população. Fortaleza não é Paris, sei, porém nada lhe ficamos a dever no aspecto social, político ou cultural. Mesmo na literatura não ficamos atrás. Se não temos Baudelaire ou Victor Hugo, somos berço de Patativa do Assaré – viga um dessa província de oitocentos mil fazedores de versos – quer mais?. Queneau que se cuide.

Meu exercício começaria na Avenida Bezerra de Menezes, apenas porque é ali o portão de entrada para quem vem do Norte - como fazia minha prima naquela oportunidade - e não porque eu quisesse fazer o plágio do plágio. O lance do Shopping que se localiza à esquerda, assim como a menção a uma das lojas do Mc Donald, são apenas alegorias. Quanto ao título do trabalho, estava na dúvida entre "Um Mergulho em Tuas Águas Tépidas" e "Táxi". Optei pelo primeiro, porque do segundo já se havia apropriado um outro manipulador de temas interessantes. Minha composição é, pois, um misto de conto, crônica, memória ou coisa nenhuma; não mais que o exercício de quem nada tem a fazer numa mormacenta tarde de segunda feira, quando um gato rajado me espreita e uma idosa senhora ressona, emborcada, na cama do quarto ao lado. Se fosse poeta, faria um longo poema em homenagem ao nosso Metrô, que rasgará o centro de Fortaleza em direção a Maracanaú. E lá vou eu.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Lauro Marques