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Astrid Cabral




Reconquista da unidade pela palavra




 

A faca pelo fio reúne seis livros de poesia de Reynaldo Valinho Alvarez, em ordem cronológica decrescente: Galope do tempo, O continente e a ilha , O sol nas entranhas , Solo e subsolo, O solitário gesto de viver e Canto em si e outros cantos. Mesmo incompleta, devido a cortes em alguns deles e exclusão do primeiro e último livros do autor, a consolidação atesta uma trajetória fecunda e brilhante, consagrada em significativos prêmios, e de reconhecida importância no panorama da poesia brasileira e de língua portuguesa. O título do conjunto é a metáfora-síntese dessa palavra poética, cuja “espada afiadíssima do canto” disseca a realidade com lucidez cortante e extrema pungência, expondo uma cosmovisão crítica e dolorosa da condição humana em nossa época.

Poeta de formação erudita e de atávicos vínculos ibéricos( “Um longo périplo une meu destino/ao do Rio e da ria…”), a dicção de Reynaldo Valinho Alvarez se distingue pelo estilo nobre e pela pureza de linguagem às vezes lusitana, traços que, associados ao equilíbrio formal e à reflexão filosófica, fazem dele um clássico. Porém, como Jorge de Lima, o poeta brasileiro de quem mais se aproxima no amplo fôlego épico-lírico do admirável O continente e a ilha, Reynaldo Valinho Alvarez não se cristaliza num único modo de expressão. Benedito Nunes já o reconheceu até como descendente de Augusto dos Anjos. O fato é que sua obra , polifacetada e de extraordinária riqueza , inclui os recursos da vanguarda (Veja-se a série “A mão e a pedra”) , as experiências bem sucedidas no aproveitamento do popular e nas invenções vocabulares, freqüentes em O sol nas entranhas e Solo e subsolo, livros mais afins da tradição modernista solta e irreverente. O autor vai do transbordamento dramático-onírico de poemas como “A miséria dos dias”, (onde se fundem em complexa trama descrições do presente, remotas evocações pessoais, resíduos de leituras e situações emotivas de pesadelo) ao despojamento de Galope do tempo, marcado entre outras coisas pelo tom sapiencial e pela concisão epigramática. Ao longo de sua obra tanto deparamos com poemas polifônicos onde a fragmentação e a variedade isomorfizam o “rosto plural” do continente americano (“Manual de conduta”) como poemas compactos, fechados em total coerência com a proposta semântica que os informa ( O solitário gesto de viver e Canto em si). Se o autor usa com invejável competência versos longos ou curtos, matemáticos ou imprevisíveis, brancos ou coloridos por rimas, a dicção que prevalece em seu discurso é a tradicional , grave e solene , sustentada pelo decassílabo heróico, metro de sua preferência.

O que caracteriza a poesia de Reynaldo Valinho Alvarez é a invulgar conciliação que ele promove entre o elenco das formas poéticas secularmente consagradas e a atualidade de sua temática nacional e transnacional. Suas composições não se subordinam à recriação de mitos ou à exumação de episódios históricos ressuscitados pela imaginação, nem se restringem às costumeiras indagações face a problemas atemporais e eternos . Emergem, muitas vezes com violência vulcânica, das vivências pessoais dentro do contexto histórico que lhe coube. Daí a profunda nostalgia da natureza, diante da qual se prostra com humilde reverência


“O canto do poeta é coisa vã,
se o sol canta por si, toda manhã”


e o conseqüente sentimento de exílio que assombra o ser massacrado pela megalópole e as simultâneas distorções do chamado progresso, neste “planeta sangrento” habitado pelo “Homem, lobo do homem” . Sobre a realidade do século XX , abundante em opressões, deita um olhar crítico e desencantado, o que nem por isso o deixa insensível às maravilhas tecnológicas , como se depreende do antológico soneto “Fax”. A perfeição formal com que contrabalança o caos urbano e social, surge como um esforço neutralizador de redenção via arte.

Ressalte-se aqui o absoluto domínio com que Reynaldo Valinho Alvarez trabalha a herança literária, permitindo-lhe explorar com segurança os padrões convencionais e injetando-lhes sangue novo. Lembre-se a estrofação progressiva de Canto em si, o soneto-e-meio que alicerça as composições de O solitário gesto de viver, as rupturas sintáticas que sucedem enjambements e antecedem breves interrogações, nos versos finais dos sonetos de “O céu programado”. O poeta demonstra rara capacidade construtora , um faro arquitetônico ao desenvolver arrojados projetos de criação verbal . Os poemas obedecem a estruturas rítmicas organizadas em série e mantêm um tema nuclear aglutinador que se desdobra em verdadeiros painéis. Se o poeta se ressente com o individualismo alienador e sofre com a fragmentação do mundo atual, tenta através da palavra unificá-lo. Daí o uso obsessivo de anáforas e sobretudo a recorrência do encadeamento leixa-pren, das múltiplas coroas de sonetos que geram universos circulares, onde a unidade é resgatada idealmente no território virtual da arte. Tal fôlego para a criação grandiosa passeia pelo lírico e pelo épico, detém-se no aqui/agora e espraia-se em périplos subjetivos e de amplo espectro social, todos transcendentes pelos vôos de reflexão e indagação.

A faca pelo fio tanto envolve o leitor pelo apuro formal, a incontestável beleza estética dos versos, quanto o arrebata pelo compromisso ético com o homem , latente na denúncia de degradação advinda com a perda de valores espirituais.
 



Leia a obra de Reynaldo Valinho Alvarez
 

 

 

 

05/07/2005