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Reynaldo Valinho Alvarez

reynaldo@webcorner.com.br

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia & Conto:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ticiano, Salomé

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 

Bio-bibliografia


Reynaldo Valinho Alvarez nasceu em 1931 na cidade do Rio de Janeiro, onde se formou em Letras Clássicas, Direito, Economia e Administração. Publicou dezessete livros de poesia, dois de ficção, dois de ensaio e quatorze livros para crianças e adolescentes, além de participar de mais de trinta coletâneas de poemas, contos e ensaios, com outros autores, e de colaborar em numerosos jornais e revistas.

Ganhou prêmios importantes das principais instituições literárias e culturais do país, entre elas a Academia Brasileira de Letras, o Instituto Nacional do Livro, a Fundação Biblioteca Nacional, a Fundação Cultural do Distrito Federal, a União Brasileira de Escritores, a Câmara Brasileira do Livro, a Fundação Catarinense de Cultura, o Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, academias de letras, secretarias e fundações de cultura estaduais e municipais, além de outras entidades no México, na Itália (Prêmio Camaiore Internacional de Poesia 1999) e em Portugal (1os. Jogos Florais do Grupo Desportivo dos Empregados do Banco Borges & Irmão, em 1979, em júri formado por Agustina Bessa Luis, Antonio Rebordão Navarro e Sá Coimbra).

Tem poemas traduzidos para o sueco, o italiano, o espanhol, o francês, o corso, o galego, o persa e o macedônio. Foi incluído pela crítica entre os nomes mais expressivos da poesia brasileira contemporânea, que representou em festivais internacionais realizados na Suécia, na Macedônia, no Canadá e na Espanha.


 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Paulo Franchetti, 2003

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 

Maracanã


A multidão arqueja. O sol adeja,
Asas de acácia sobre o mar de grama.
E a multidão regressa, ainda opressa,
Prenhe de estrelas, morta do vazio.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 


A Paz quase impossível


Tudo é parede em torno, tudo é nada
e em vão martelo o crânio contra o muro,
os ladrilhos manchados da prisão,
o cárcere maldito, a solitária,
a cela-surda em que não sento ou deito,
mastigando os insetos do meu dia,
a palavra travada, a fala morta
no tubo amordaçado da garganta,
eu, Sísifo rolando a pedra bruta,
eu, Prometeu acorrentado e exposto
ao abutre infernal, eu, navegante
sem bússola ou sextante, remo ou vela,
eu, estrangeiro indesejado, eu, morto,
insistindo no jogo de estar vivo.


 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Sebastião Uchoa Leite

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 

Canto em si


1
Não busco outro caminho, cedo a calma
A angústia de lavrar no mesmo chão.

A pétrea consistência deste solo
Não dissolve meu ânimo, enlouquece
O que dentro de mim mais alto grita.

Nesta lavoura, a mão é o instrumento
Com que se abrir a terra e penetrá-la
Para entregar-lhe o amor de um a semente
Exposta ao tempo, a fungos e carunchos.

No arado não se pense, o chão se fecha
Ao fio agudo e firme, assim a enxada
Também se parte contra o solo duro
E apenas resta a ponta de meus dedos
Para feri-lo, amá-lo e fecundá-lo.

A par o som arranca ao rijo solo
E nada mais, que à concha, em cada mão,
Feita de pele, carne, nervo e sangue,
Cabe a tarefa e sol de revolvê-lo,
Suada, escalavrada, enegrecida,
Porto em que a terra é nau posta em abrigo.

A estas leiras, labrego, me transporto
A cada madrugada e delas volto
Para comer, se existe, a cada noite,
O pão que elas não deram por ser bruto
O chão e fraca a mão que dele trata,
Mas que insiste em cuidá-lo, porque o grão
E causa, muito mais que conseqüência...

2
Cansei de andar em busca do destino
E tranqüilo retraço meu caminho.

Para curar melancolias fundas,
Há sempre mais um hausto que permite
Viver um pouco mais, se é isto vida.

Ouço ainda o ruído das batalhas
Terminadas. Vencidas ou perdidas,
Foram batalhas de uma guerra santa
Em que ao nascer acaso me alistassem.

Assim posso dar fé que a morte obscura
De quantos vão ficando no caminho,
Bem mais do que parece, ofusca o brilho
Das falsas aparências de vitória
Dos que falam mais alto e se confundem.

Confundem-se os que gritam, confundindo
Os que ouvem e não sabem que os caídos
Dizem mais no silêncio em que caíram,
Dizem mais e mais fundo, enquanto a voz
Oprimida e apagada fere o nervo
Exposto a golpes sempre repetidos.

Retraço no que posso meu caminho
Aberto pela quilha entre os sargaços
Imensos deste mar, ora parado,
Ora coberto de ondas pelo vento
Que sopra não de um ponto, mas de vários,
Para provar a força, não do braço,
Mas do ânimo que imprime rumo ao barco.

19
Esta rua, esta praça, esta cidade
circulam no meu sangue e me envenenam.

As vísceras se rompem na explosão
dos motores que fremem nas esquinas
envenenando os ares e os pulmões.

A cidade penetra nos tecidos
como um câncer que invade todo o corpo.
Os dejetos, o lixo, a escória, o esgoto
são os fluidos secretos do meu corpo.

Está dentro de mim esta cidade
como a ostra e o caramujo em sua casca.
E nutre-se de mim, de meus desejos
e da fome e da sede e dos impulsos
que regem os meus gestos de consumo.

Aqui, onde nasci, deixo meu fardo
de angústia e solidão, enquanto vibra
ao longo das areias e avenidas,
sob o sol, sobre o solo dos aterros,
sabendo a sal ao sul, esta cidade,
que pulsa em multidões enlouquecidas.

Carrego-a nos meus bolsos, nos ouvidos
saturados de cargas explosivas.
Transporto-a no meu hálito de chama
consumida entre sopros divergentes.
Enquanto o sol me queima, estou ardendo
nas águas deste Rio, degradadas
e assim mesmo lustrais de meu batismo.

20
Nas abas destes morros me pergunto
se eles voam para o alto ou se mergulham.

Quem estes morros sobe não ascende,
mas desce e até mergulha, salvo escasso
e curto vôo se nasceu com asas.

A sombra destes morros se arremete
contra antenas, terraços, coberturas,
poluindo os telhados, as calçadas
e os olhos descerrados nas janelas.

Os frutos desses morros vão às ruas,
às praças, aos jardins, às avenidas,
para mostrar as marcas dos cansaços
em que foram gerados, quando as noites
acenderam os corpos mal lavados.

Os frutos apodrecem nas calçadas,
roídos sem remédio por insetos
de medo e rejeição. Caem dos ramos
e se perdem nas ruas. São pisados
e esmagados no asfalto amolecido
sob o sol criminoso do verão.

Nas abas destes morros me concentro,
emparedado dentro de mim mesmo,
um homem só, como outros da cidade
imensa e tão pequena para a fonte
que jorra em cada ser e não se expande
para juntar-se ao Rio que deságua
na indiferença líquida do mar.

30
Cansei de andar em busca do destino
e tranqüilo retraço meu caminho.

Para curar melancolias fundas,
há sempre mais um hausto que permite
viver um pouco mais, se é isto vida.

Ouço ainda o ruído das batalhas
terminadas. Vencidas ou perdidas,
foram batalhas de uma guerra santa
em que ao nascer acaso me alistassem.

Assim posso dar fé que a morte obscura
de quantos vão ficando no caminho,
bem mais do que parece, ofusca o brilho
das falsas aparências de vitória
dos que falam mais alto e se confundem.

Confundem-se os que gritam, confundindo
os que ouvem e não sabem que os caídos
dizem mais no silêncio em que caíram,
dizem mais e mais fundo, enquanto a voz
oprimida e apagada fere o nervo
exposto a golpes sempre repetidos.

Retraço no que posso meu caminho
aberto pela quilha entre os sargaços
imensos deste mar, ora parado,
ora coberto de ondas pelo vento
que sopra não de um ponto, mas de vários,
para provar a força, não do braço,
mas do ânimo que imprime rumo ao barco.


 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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Sébastien Joachim

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 

O solitário gesto de viver


20
O solitário gesto de viver
não demanda a coragem que há na faca,
na ponta do punhal e até no grito
de quem fala mais alto e está coberto
de razões, de certezas, de verdades.
O gesto de viver se oculta em obras
tão íntimas do ser, que o desfazê-las
é mais que indelicado, é violência
que nem sequer se pode conceber.
O gesto de viver é só coragem,
mas, de tal forma próprio e incomparável,
que não se exprime em verbo, imagem, mímica
ou qualquer outra forma conhecida
de contar, definir ou explicar.
A coragem no gesto de viver
está em coisas simples, por exemplo,
na diária decisão de levantar.
E mais, em se vestir e trabalhar
por entre espadas, punhos e navalhas,
peito aberto, sem armas, passo firme,
e à noite, ainda intato, regressar.

25
Cada resto de pão jogado aos pombos
me revela uma praça, a gente, o mundo,
me reintegra nos braços de quem amo,
me devolve outros rostos, outro tempo,
um regresso na vida que é avanço,
um ganho, uma vitória, um outro tento
conseguido no poço, lá no fundo,
por dentro desta caixa em que lateja
a bomba muscular tão mastigada
nos dentes de emoções, raivas e dores,
a coorte espantosa dos fantasmas
que me fazem rolar todas as noites,
envolto no lençol ou fora dele.
Cada resto de pão é um compromisso
feito de nada e tudo, um gesto pleno,
repleto de vazios sem sentido,
que a razão e o sentido vêm do gesto
ele próprio, se bem que não gratuito,
mas tão cheio de força no ser simples,
tão claro nesse abrir de mão aos pombos,
tão aberto na força da clareza.


 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Regina de Souza Vieira

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 


Lavradio


epílogo

como unir a legião ora dispersa
de anônimos heróis?
sua alma tersa
está em quanto róis móis e remóis
em ti de ti
no que há deles em si

pessoas coisas bichos fatos climas
como recuperá-los sem que oprimas
a franja do real que rasga esgarça
e assim transforma tudo numa farsa?

como lavrar o solo da memória
para colher em cada pomo a história
que ficou esquecida entre os despojos
na palha seca de profundos fojos?

tens sempre que lavrar

teu passadio
só se paga com o suor
do lavradio

assim há que afastar a pedra bruta
e por maior que seja a tua luta
tens que manter-te nela atento e pronto
a cada passo mau desse confronto

labora lavra opera obra trabalha
levando na mochila a tua tralha
ao campo ressequido ou inundado
de onde colhes o que foi semeado

o anônimo sobrado em que teu tio
morava nessa rua
lavradio
existirá ou não
tudo é fastio
nas águas desse rio
que lá vão

o barco audacioso da memória
já naufragou em uma noite inglória
em meio ao nevoeiro e às ondas frias
de um mar acostumado às ventanias

a pesca-lavra é dentro do poema

não a formulação de um teorema
ou selvagem garimpo predatório
de fria autópsia em mesa de escritório

o mergulho há de ser em som e sono
bem onde a corda tange e no abandono
em que a maré revela o que há no fundo
do mar do ser no âmago profundo

é preciso lavrar
o chão vazio
o solo da palavra
arar a terra
com o agudo fio
como o poema
que se quer diverso
único estreme
enxuto claro e terso
para se ter na lavra
dia a dia
o poema
a palavra
o lavradio


 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

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Rita Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reynaldo Valinho Alvarez


 

Janeiros como rios


33
A fome pasta a sordidez das ruas
com mandíbulas cruas, línguas nuas
do leite maternal, sem os calores
de seios que segregam os amores
de desdentadas mães engravidadas
em catres encardidos, violadas
por guerreiros de fala gutural,
que injetaram na veia o bem e o mal,
para atuar no papel de super-homens,
antes de oferecer os seus abdomens
aos projéteis das guerras sem fronteira,
em que ninguém se abraça a uma bandeira
e o anti-herói tombado entra, de fato,
no reino do mais torpe anonimato.
De Lavradio – “Janeiros como rios”.


55
Incautos elogios ao carrasco
saem das bocas. Não cobertos de asco,
mas com fluência e bom estilo, quase
como um vôo de ave em boa fase,
artístico ao planar, perfeito em tudo,
desenho puro no ar, solene e mudo.
A vítima se prostra e até bajula
quem a castiga e sua dor açula.
O pesadelo deita-se na rua
e mostra sua face horrenda e nua.
Um delírio sacode os ramos tortos
de árvores secas como o olhar dos mortos.
O desencontro universal detesta
que os desiguais dancem na mesma festa.
De Lavradio - “Janeiros como rios”.


 

 

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

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Leontino Filho

 

 

 

31.03.2006