Reynaldo Valinho Alvarez
Canto em si
1
Não busco outro caminho, cedo a calma
A angústia de lavrar no mesmo chão.
A pétrea consistência deste solo
Não dissolve meu ânimo, enlouquece
O que dentro de mim mais alto grita.
Nesta lavoura, a mão é o instrumento
Com que se abrir a terra e penetrá-la
Para entregar-lhe o amor de um a semente
Exposta ao tempo, a fungos e carunchos.
No arado não se pense, o chão se fecha
Ao fio agudo e firme, assim a enxada
Também se parte contra o solo duro
E apenas resta a ponta de meus dedos
Para feri-lo, amá-lo e fecundá-lo.
A par o som arranca ao rijo solo
E nada mais, que à concha, em cada mão,
Feita de pele, carne, nervo e sangue,
Cabe a tarefa e sol de revolvê-lo,
Suada, escalavrada, enegrecida,
Porto em que a terra é nau posta em abrigo.
A estas leiras, labrego, me transporto
A cada madrugada e delas volto
Para comer, se existe, a cada noite,
O pão que elas não deram por ser bruto
O chão e fraca a mão que dele trata,
Mas que insiste em cuidá-lo, porque o grão
E causa, muito mais que conseqüência...
2
Cansei de andar em busca do destino
E tranqüilo retraço meu caminho.
Para curar melancolias fundas,
Há sempre mais um hausto que permite
Viver um pouco mais, se é isto vida.
Ouço ainda o ruído das batalhas
Terminadas. Vencidas ou perdidas,
Foram batalhas de uma guerra santa
Em que ao nascer acaso me alistassem.
Assim posso dar fé que a morte obscura
De quantos vão ficando no caminho,
Bem mais do que parece, ofusca o brilho
Das falsas aparências de vitória
Dos que falam mais alto e se confundem.
Confundem-se os que gritam, confundindo
Os que ouvem e não sabem que os caídos
Dizem mais no silêncio em que caíram,
Dizem mais e mais fundo, enquanto a voz
Oprimida e apagada fere o nervo
Exposto a golpes sempre repetidos.
Retraço no que posso meu caminho
Aberto pela quilha entre os sargaços
Imensos deste mar, ora parado,
Ora coberto de ondas pelo vento
Que sopra não de um ponto, mas de vários,
Para provar a força, não do braço,
Mas do ânimo que imprime rumo ao barco.
19
Esta rua, esta praça, esta cidade
circulam no meu sangue e me envenenam.
As vísceras se rompem na explosão
dos motores que fremem nas esquinas
envenenando os ares e os pulmões.
A cidade penetra nos tecidos
como um câncer que invade todo o corpo.
Os dejetos, o lixo, a escória, o esgoto
são os fluidos secretos do meu corpo.
Está dentro de mim esta cidade
como a ostra e o caramujo em sua casca.
E nutre-se de mim, de meus desejos
e da fome e da sede e dos impulsos
que regem os meus gestos de consumo.
Aqui, onde nasci, deixo meu fardo
de angústia e solidão, enquanto vibra
ao longo das areias e avenidas,
sob o sol, sobre o solo dos aterros,
sabendo a sal ao sul, esta cidade,
que pulsa em multidões enlouquecidas.
Carrego-a nos meus bolsos, nos ouvidos
saturados de cargas explosivas.
Transporto-a no meu hálito de chama
consumida entre sopros divergentes.
Enquanto o sol me queima, estou ardendo
nas águas deste Rio, degradadas
e assim mesmo lustrais de meu batismo.
20
Nas abas destes morros me pergunto
se eles voam para o alto ou se mergulham.
Quem estes morros sobe não ascende,
mas desce e até mergulha, salvo escasso
e curto vôo se nasceu com asas.
A sombra destes morros se arremete
contra antenas, terraços, coberturas,
poluindo os telhados, as calçadas
e os olhos descerrados nas janelas.
Os frutos desses morros vão às ruas,
às praças, aos jardins, às avenidas,
para mostrar as marcas dos cansaços
em que foram gerados, quando as noites
acenderam os corpos mal lavados.
Os frutos apodrecem nas calçadas,
roídos sem remédio por insetos
de medo e rejeição. Caem dos ramos
e se perdem nas ruas. São pisados
e esmagados no asfalto amolecido
sob o sol criminoso do verão.
Nas abas destes morros me concentro,
emparedado dentro de mim mesmo,
um homem só, como outros da cidade
imensa e tão pequena para a fonte
que jorra em cada ser e não se expande
para juntar-se ao Rio que deságua
na indiferença líquida do mar.
30
Cansei de andar em busca do destino
e tranqüilo retraço meu caminho.
Para curar melancolias fundas,
há sempre mais um hausto que permite
viver um pouco mais, se é isto vida.
Ouço ainda o ruído das batalhas
terminadas. Vencidas ou perdidas,
foram batalhas de uma guerra santa
em que ao nascer acaso me alistassem.
Assim posso dar fé que a morte obscura
de quantos vão ficando no caminho,
bem mais do que parece, ofusca o brilho
das falsas aparências de vitória
dos que falam mais alto e se confundem.
Confundem-se os que gritam, confundindo
os que ouvem e não sabem que os caídos
dizem mais no silêncio em que caíram,
dizem mais e mais fundo, enquanto a voz
oprimida e apagada fere o nervo
exposto a golpes sempre repetidos.
Retraço no que posso meu caminho
aberto pela quilha entre os sargaços
imensos deste mar, ora parado,
ora coberto de ondas pelo vento
que sopra não de um ponto, mas de vários,
para provar a força, não do braço,
mas do ânimo que imprime rumo ao barco.
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