Astrid Cabral
Poesia, necessidade vital
Poeta de raro fôlego, Reynaldo
Valinho Álvarez, após consolidar sua obra poética em 1999, sob o
título de A faca pelo fio, reaparece-nos em 2004 com
Lavradio, poema tripartite, seguido de outro em 6
cantos, O desembarque.
Lavradio é vocábulo que remete
imediatamente a dois campos semânticos, o do nome comum e o do nome
próprio, também este comum ao leitor com vivência carioca. À leitura
do livro, o termo lavradio, não dissocia as duas acepções. O
autor vale-se magistralmente dessa polissemia aprofundando-lhe os
campos significativos.
Como nome
comum, seja substantivo ou adjetivo, o referencial aponta para o
trabalho da terra, a exploração de jazidas, isto é, a lavra, aqui
tomada metaforicamente para o cultivo da linguagem poética. Quem
conhece a obra de RVA sabe que poucos autores elaboram com tamanha
eficiência o território poético da língua portuguesa, poucos são tão
senhores de recursos capazes de fazer desabrochar e frutificar a
beleza verbal.
Já o nome
próprio nos situa naquela tradicional rua do Rio de Janeiro,
perpendicular à moderníssima Av. República do Chile, mas que, para
gáudio de muitos, ainda preserva os traços arquitetônicos do passado
e abriga antiquários, para o prazer dos nostálgicos, oferecendo um
salutar contraste à moderna paisagem urbana. Essa rua, além de
integrar a memória de uma coletividade, está presente nas
reminiscências da infância de RVA, e sobre elas é que o poeta
desenvolve a parte inaugural de seu longo poema. É fato consabido o
papel preponderante dos primeiros anos de nossas vidas, poço ou
manancial onde todos nos dessedentamos. O poeta vai simultaneamente
revelando a realidade social das décadas de 30 e 40, os costumes da
época, a sombra da guerra e da ditadura, além de recriar um tempo
pessoalíssimo ao se debruçar sobre cenas e eventos de sua vivência.
Dessa lavra
pelos campos da memória, vão sendo ressuscitados seres, como o avô,
o pai e o tio, os anônimos maltrapilhos de becos e calçadas; locais
e coisas antigas como a escola e o bonde noturno; episódios como o
nascimento da irmã; objetos como o ovo no prato ao meio-dia, o mapa
onde “há uma guerra / sem fumaça / qual um brinquedo / que se brinca
/ e passa”, e os jornais em que “a guerra estava à escolha / em cada
folha / encharcada do sangue / das manchetes”; palavras saudosas dos
familiares imigrantes, “ah tudo era tão bom num tempo de antes”;
paisagens como a dos Arcos, o convento dos frades barbonos, a rua
Evaristo da Veiga. Imbricadas com as lembranças também afloram as
emoções próprias da idade, sonhos, sustos, medos, choros e
descobertas. Afinal, “as portas nunca estavam entreabertas / tinhas
de abri-las entre calafrios”. O sentimento de inadequação aparece
expresso nos versos: “tu te sentes pequeno e limitado / diante do
mundo adulto e insuspeitado”.
Com muita propriedade, RVA optou por
exprimir-se em versos curtos nessa retomada da infância,
estabelecendo uma consanguinidade maior com o pensamento infantil,
feito sobretudo de essencial simplicidade e de finas intuições, mais
que de elaborados raciocínios a requererem frases longas e
complexas. Outra sabedoria está no uso do verbo em segunda pessoa,
criando um constante diálogo do poeta atual com o menino antigo. A
primeira pessoa acarretaria uma unidade entre dois momentos tão
distintos, fundindo e apagando o menino de ontem no adulto de hoje.
Artísticas artimanhas, pois, de um criador de alta consciência
estética. O fato é que temos, como resultado de tais escolhas uma
perspectiva genuína, ou seja, uma visão de mundo compatível com a
situação em foco.
A parte seguinte de Lavradio,
intitula-se Noite sobre dia e difere da anterior em
muitos aspectos introduzindo outro clima, outra coerência interna.
Constitui-se em longo poema de 65 fragmentos de cunho mais abstrato
e, por conseqüência, mais impalpável. RVA concentra-se no
mundo interior, numa entrega total ao território da imaginação e da
reflexão.
A própria
menção à noite, que desaba sobre o dia, já sugere e prepara o
embotamento dos detalhes visuais evidentes na primeira parte, onde
predomina a atmosfera solar. Agora, os elementos que evocam
concretudes vão desempenhar função metafórica. Cada fragmento
apresenta um estado de espírito, um dinamismo interior. O poeta
prossegue o diálogo consigo mesmo, mas o uso da segunda pessoa
parece refletir a busca de objetividade, afastamento necessário para
compensar o excesso de subjetivismo e promover maior transparência e
comunicabilidade.
Noite sobre dia é a
longa vigília do poeta dialogando com a própria alma, analisando sua
condição humana, especificamente marcada pelo destino de poeta.
Lê-se no fragmento 33: “para que escreves? / para quem escreves? /
são perguntas sem volta que subscreves”.
Aqui e ali vêm à tona as decepções
que o amarguram, a utopia que o abandona, sua “tenda de mágoas”. No
fragmento 36 constata: “lá se foram no ralo ideologias / do mais
alto valor / e agora espias / a inundação que te cercou / a lama”.
No fragmento 50, lançando mão do
emprego reiterado do verbo pagar, RVA enfatiza o preço que se
paga por estar vivo, os altos custos do viver na sociedade de
consumo e ser poeta. Uma longa seqüência vai enunciando: “pagas por
ter nascido”, “pagas porque respiras e suspiras”, “pagas porque te
vestes todo errado”, “pagas porque és rebelde e desconfias”, “pagas
porque tens medo e o lobo sente”, para arrematar de forma
contundente: “pagas mas certifica-te / o teu débito / será sempre
maior do que o teu crédito” sublinhando a dramática, insolúvel
inadimplência. Porém o poeta reage a essa terrível conjuntura, não
abre mão da poesia, não se dobra à sabotagem geral do mundo
materialista e heroicamente resiste. Assim o texto se encerra de
modo vitorioso e auroral: “plantado em ti nasce e renasce o
poema / flor de esperança / lúcido teorema”.
Nesta segunda parte, de caráter
gravemente meditativo, RVA recorre ao decassílabo, verso cuja
amplitude propicia abrigar a funda inquietação existencial que o
acomete. E mais, confere-lhe uma vestimenta gráfica nova. Possuidor
de invejável domínio técnico das formas versificatórias consagradas,
e ao mesmo tempo ousado inventor, ele nos apresenta um decassílabo
visualmente fraturado, embora respeite métrica e acentos habituais.
A incorporação do espaço visual na fatura do poema escrito
-
conseqüência da emancipação da oralidade no verso
-
é importante fator expressivo desde que usado de modo a agregar
valor. Tome-se o fragmento 59 como exemplo do processo. Lê-se na 1ª
estrofe:
“mói-te a pedra
do poema
mói-te a mó
com que te mói a
noite
quando
só
vês o teu dia
consumido em pó”
Toda a idéia de esfarelamento, expressa conceitualmente, vê-se
demonstrada na forma das palavras e frases soltas assim desmembradas
no chão do papel. O isolamento da palavra “só” isomorfiza-lhe o
significado. Passemos à 2ª estrofe composta por 3 decassílabos:
“o sol do poema sola
enquanto rola
a mó da noite
e
dos teus pés
a
sola
mais no lodo se
gruda
afunda
e atola”
O contraste
semântico entre sol e noite mais se destaca com a separação dos
elementos no campo visual. Idem para o movimento descendente dos pés
acompanhando a escada gráfica e se afundando no lodo. O desenho do
significante está portanto a serviço do significado enfatizando-o.
A extrema
habilidade versificatória que RVA demonstra na composição de seus
poemas pode ser observada também no manuseio da linguagem. São
eloqüentes exemplos da fina percepção sintática e léxica os versos
do autor: “bater às portas / ou bater as portas”, “coses o poema que
te coze”. Pergunto-me se as novas gerações de leitores estão
preparadas para apreciar tais sutilezas de nossa língua.
Noite sobre dia lavra
o contraste cósmico primordial do mundo, “treva contra luz”, eixo de
toda a vida animal e anímica, polaridade arcaica, preocupação
barroca. Ao longo desse périplo espiritual atravessando as faces
antagônicas de breu e claridade, o poema comparece como o “escudo”,
o “estandarte” e “da esperança a mais valiosa gema”. Na concepção de
RVA o poema é a arma que rasga a noite e revela o dia, que faz a
vida triunfar sobre a morte e cancelar a condenação ao nada.
Reaparece, portanto, no fragmento final (65), a mesma fé na arte
literária, explícita anteriormente em outros livros seus e que lhe
modela a cosmovisão, fotalecendo-o contra o desespero e salvando-o
do aniquilamento existencial.
Janeiros como rios é a
terceira parte do livro, constituída por 80 sonetos decassilábicos
de rimas parelhas. O título, a evocar a cidade carioca, transcende a
conotação espacial para adquirir uma de caráter temporal:
“Um rio de janeiros atravessa / o mar humano...” Aqui, a ação
verbal se desenvolve sempre em 3ª pessoa, em absoluta coerência com
o sopro épico que fundamenta a seqüência. O autor já não fala de si
liricamente, mas do homem em geral. É a coletividade que ocupa o
foco de sua visão. O poeta volta-se, portanto, para fatos e idéias,
adotando uma atitude impessoal de denúncia, suspendendo aquela ponte
com o interlocutor, constante nas partes anteriores. Sem dispensar
alusões literárias, quer a escritores clássicos, quer a mitos
gregos, RVA, poeta erudito, não deixa de pintar delirante painel da
atroz realidade urbana.
Resumindo,
pode-se dizer que o texto trata da condição humana, bem como da
barbárie das megalópoles contemporâneas, temas, aliás, recorrentes
na obra do autor.
Janeiros como rios inicia-se
com a acachapante presença do verão carioca e a descrição das
sensações que o calor provoca, as reações do corpo sob o açoite do
excesso de luz. O poeta consegue envolver o leitor na pesada
atmosfera de opressão e sufoco. Mas o mal-estar físico serve de
prelúdio ao moral que vai sendo sucessivamente apresentado. Ao
famoso protesto ciceroniano contra a perversidade humana, O
tempora, o mores!,
RVA acrescenta a miséria: “Ó tempos, ó costumes, ó miséria”. Todo um
elenco de misérias vai sendo revelado: “O engano, a traição, o ódio
mais duro / trazem, do humano, o selo, ímpio e obscuro”. Existe
mesmo uma subreptícia pintura do homem como fera, pela freqüente
alusão a animais predadores: “São milhões e milhões os jacarés, /
pelas ruas e à porta dos cafés, / cuspindo na calçada o álcool
maldito”. Em outra passagem: “As mãos não se procuram, mas se
afastam, / enquanto, turbulentas, se desgastam / em gestos de
agressão ou de revolta, / como o uivo bronco que a alcatéia solta,”
e o diagnóstico: “(...) seres que se amam, mas que matam / e, em
delírio soturno, se maltratam, / movidos de ódio autodestruidor”.
Para RVA, os homens nada têm a reclamar dos animais que se
entredevoram, pois repetem o mesmo comportamento, com suas “mãos
aptas a criar tanta beleza, mas dispostas ao crime”.
Após várias
referências à colossal luta do homem no “bravíssimo oceano” das
adversidades, onde ironicamente afirma: “Quem se rebela é um
dinosssauro bronco, / que merecia estar atado a um tronco” e “As
razões do mercado são mais certas / do que todas as velhas
descobertas”, dá-se no final desta terceira parte, o raiar da
esperança e o apoteótico triunfo do poema. Eis que “A esperança e a
paz revoam juntas / sobre traições e intrigas já defuntas”. Afinal,
sobre traidores e intrigantes, esperança e fantasia “constroem no ar
sua espaçosa via / e hão de compor, pedra após pedra, o poema /
estratégia de luta, estratagema / que resgata o que existe de mais
fundo / e de mais poderoso neste mundo”.
Assim sendo as
três partes do livro convergem para reiterar a necessidade do poema,
triplicemente conceituado como lavra verbal, escudo e estatégia de
luta. RVA, ao extravasar sentimentos, reflexões e críticas em torno
do homem e suas cicunstâncias, constrói um verdadeiro edifício de
celebração e afirmação do ofício poético.
Segue-se a Lavradio, o
livro O desembarque. O poeta mantém o decassílabo, mas
varia as formas poéticas. Abre mão do riquíssimo repertório de rimas
parelhas dos 80 sonetos anteriores, onde chegou a estabelecer a
dupla mil / nihil da expressão em enjambement “Nihil
obstat”), para vazar sua verve em versos brancos ao longo dos
seis alentados cantos. Apenas no poema que encerra a série,
“Epílogo”, ele se expressa em hexassílabos rimados, retomando o tom
musical da canção e a linguagem mais emotiva e simples da primeira
parte de Lavradio.
O título O desembarque
integra a metáfora continuada, da vida como viagem e da morte, como
ponto final, eixo temático da obra. Os cantos vão desenvolver esse
percurso através do espaço geográfico da paisagem européia, de mitos
como o de Parsifal e da memória literária ocidental,
Shakespeare, Blake, Dante, Poe, Baudelaire. O poeta alude aos
arcanjos bíblicos do bem, Gabriel, Rafael, Miguel, e invoca a
companhia dos imensos anjos criadores que o precederam na literatura
clássica e lusitana. Viaja não só pelo mundo do espaço físico, como
também pelos meandros da mente.
Ao escolher como meio de transporte
o trem, tal fez Adriano Espínola com o seu Táxi, RVA
sabe que, diferentemente do navio e do avião, os quais rarefazem
a paisagem reduzindo-a a águas e nuvens, esse veículo proporciona
uma incrível proximidade com a terra onde nos enraizamos. O aspecto
de contigüidade com o chão, muito bem expresso na imagem “O trem é
como um réptil”, propicia ao poeta uma visão realista e sobretudo
crítica. Daí ele apontar a existência de dois mundos, o verdadeiro
que pode ser captado através dos cinco sentidos, e o virtual,
manipulado e deformado pela mídia. Na esfera da comunicação de
massa: “Vais pautado e montado ou editado / consoante o sabor
pasteurizado / familiar às ilhas de edição. / Se não estás na pauta,
não existes”. O poeta denuncia o mundo do consumo, marcado pela
alienação social. “Os loucos que caminham pelas ruas / usam roupas
na moda e calçam tênis / poduzidos na Ásia por escravos / com as
mãos atrofiadas pela fome”.
Há em O desembarque um
clima de vesperal da morte, graças ao pungente sentimento de
desenlace. Creio que o poema “Leixa-pren” é aquele que melhor
manifesta a sensação da iminência do fim. O próprio uso dessa forma
poética parece sublinhar a condição do que se vai e miraculosamente
volta, como se fosse um múltiplo ensaio de despedida:
“Os que foram não voltam. Não ainda.
Não ainda e te agarras a este ainda.
A
vida se constrói de ainda, ainda,
enquanto
não se finda.”
Perpassa o livro todo a serenidade
da sabedoria. O reconhecimento da absurda condição de passageiro,
inerente ao ser humano, é uma súmula filosófica expressa em
conformidade com a metáfora que estrutura o poema:
“(...) Teu bilhete
não
o compraste, foi-te presenteado
e
nem sequer conheces teu destino.”
No último Canto, a filosofia do
carpe diem horaciano, já mencionada no Canto 3, emerge nos
poemas 4, 5 e 6.
Vê-se, pois, que RVA vem colhendo
seus dias de forma exemplar e fecunda, presenteando generosamente os
leitores de poesia com momentos de intenso prazer estético,
construindo uma obra destinada a perdurar e resistir à cultura de
massa.
Leia a obra de Reynaldo
Valinho Alvarez
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