Astrid Cabral
Águas represadas
Terei eu três anos? Pouco importa. É
quando me sinto inaugurando o mundo dentro de enorme bacia de
alumínio cheiinha d’água. Estou ao sol e o sol se multiplica e se
esfacela em reflexos que dançam e ondulam sob minhas mãos. Em vão
tento agarrá-los, esses pseudos peixes. Bato no corpo da água
fresca, fria, penetrável. Corpo que se fende, salta, saltita, se
estilhaça em gotas que espirram das bordas molhando o mosaico do
chão, ou se recompõem rapidinho, escorrendo por meus ombros e
braços, regressando à bacia e deixando-me entrever o corpo imerso,
barriga, pernas, pés, tudo oscilando, mesmo que eu fique imóvel.
Chamam-me e me finjo de surda, atenta que estou ao chapinhar da água
sob as palmadinhas que improviso transbordante de euforia. Tenho o
rosto mais úmido que focinho de cachorro e língua de gato. Ouço
dizerem, deixa a patinha na lagoa dela enquanto houver sol. O sol
não se apagou. Esse dia nunca anoiteceu, sempre luminoso dentro de
mim.
O tio me toma pela mão e me leva à
praia. Ainda é madrugada quando deixamos a casa. Tudo é ainda um
azul geral, imenso caldo de anil, mal se adivinhando o desenho do
mundo. Na rua as janelas fechadas parecem dormir junto com as
pálpebras dos moradores. Criança pequenina não pode tomar sol forte.
Serei tão pequena assim? Me lembro da irmãzinha que ficou no berço,
nem engatinhar sabe e só passeia de colo em colo. Já na praia o azul
noturno começa a empalidecer. Vai ficando tão esmaecido que distingo
comprida linha entre a areia clara e o mar verdeazul. Vem que aqui é
bem manso. Vou caminhando, a areia umedecida cochichando no atrito
de moldar-me os pés, que, adiante, param de deixar rastro e
mergulham na água rasa. Depois é aquela sensação gostosa do abraço
molhado me envolvendo suave, repetidas vezes, grudando-se a mim na
lã molhada do maillot.
Descubro que o vento é quem franze a
pele do mar. Quero permanecer com o mar até o pescoço, que o vento
não sopre em mim arrepiando-me toda, enregelando-me a pele,
fazendo-me bater o queixo, dentes contra dentes. Quero sentir o
balanço da onda, o vaivém me tocando, ora devagarzinho, ora de
supetão, os cabelos pingando sabor de sal na boca. Arregalo os olhos
no fundo d’água, lá estão peixinhos passeando, brincando de nadar.
Sinto-me em casa que nem eles. Nenhum me diz vai embora, seu lugar
não é aqui, por isso me demoro tentando pegá-los e, quando o tio
decide voltar, fico choramingando, mas tio, o sol não está forte,
não vou me queimar nem um tantinho, juro.
Mas vem o dia em que vejo riachos se
desatando dos olhos de minha mãe. Sou levada pra bem longe em
conseqüência desse pranto. Estou num navio do tamanho de um
quarteirão, lá dentro até parece uma cidade, mas o mar é bem maior,
tanto que até se encosta no céu. Tiro o anel de chapa do dedo, jogo
dentro de um copo d’água e ele logo se afunda. Que milagre será esse
do navio tão pesado não afundar. As pessoas me seguram e dizem,
cuidado cuidado senão você cai, menina, tem muito tubarão rondando o
navio. Penso no mar tão amiguinho que ficou lá atrás na beira da
praia e estranho aquela superfície proibida, infinita, que não posso
tocar, apenas olhar à distância pelo redondo da vigia ou do convés,
se alguém me vigia. No entanto me fascina saber que deslizo nas
costas do monstro colossal de quem não vejo cabeça nem cauda, só o
lombo, às vezes com escamas de ouro e prata. Horas há em que ele se
sacode e vira pratos, talheres, entorna copos nas mesas. É como se
ele fosse um simples balanço de jardim, indo bem lá em cima, bem lá
em baixo, só que não chega a me molhar. Passa tempo até que amanheço
sobre novas águas, de outra cor e de outro cheiro. São bem mais
estreitas e calmas, de um amarelo pálido, e com o correr dos dias
vão se misturando, primeiro com outras verdes cor de chuchu, mais
adiante, com outras escuras, cor de café. Menina, vem ver o encontro
das águas, de um lado café-com-leite, de outro café puro. O rio fica
malhado como o couro de um boi gigante, quem sabe de um cavalo, pois
vai correndo apressado no meio do verde, sem ficar assim paradão
feito boi sonolento. Então começa minha vida no meio dos rios.
Manaus é moça debruçada no espelho do
Rio Negro, que avança por ela com os longos braços dos igarapés,
encharcando a saia de seus quintais, improvisando piscinas selvagens
nos subúrbios. Aos domingos, além das missas, rola a alegria dos
banhos nos rústicos balneários. Vamos ao parque maior resgatar o
passado anfíbio. Vamos mergulhar, bubuiar, afogar e ressuscitar,
fazer guerras aquáticas, inventar metamorfoses fantásticas: eu sou
tartaruga, tu, maninha, és curimatã, Lacy, faz de conta ser arraia,
Manão, rã, Auxi, tucunaré, Ivan é boto, Cláudio, jacaré. Ao cair da
noite somos arrancados daquele paraíso, membros cansados, ouvidos
entupidos, cabelos pedindo pente, e, misturado ao suave torpor fruto
do dia intenso, o sonho do próximo domingo no mesmo local. Durante a
semana, a condenação ao banho de cuia, a tina entre quatro paredes,
a não ser que a chuva aconteça. Se trovões perturbam o silêncio das
tardes, arrastando invisíveis móveis pelo soalho dos céus, os cães,
tomados de pânico, se põem a latir e o alvoroço se apossa de nossos
corações. Ficamos assuntando as nuvens, pastoreando com o olhar
aquele rebanho que, a qualquer momento, pode se dispersar tangido
pela ventania ou se transformar num imenso chuveiro. Vem chuva, cai
chuva, gritamos cantando, e agradecemos a bênção descendo sobre as
cabeças, ensopando blusas e camisas. Corremos a apanhar as mangas
derrubadas por fortes pancadas, e vamos enchendo alguidar e paneiros,
e nos dispomos a recolher a roupa secando nos varais. A do quarador
pode ficar lá mesmo, os dedos da chuva vão esfregar. Sentimos os
dedos da chuva na própria cara, nossos cabelos misturados aos
cabelos da chuva. Corremos para que as gotas batendo nas pálpebras
gerem fagulhas de luz nos olhos. Temos a impressão de farejar
estrelinhas cadentes, de esfregar a cabeça num pedaço de céu que,
despencado, aterrizou. Gostamos quando folhas secas, gravetos e
terra vão tapando os ralos de escoamento, a casa semi-inundada mais
parece um dos muitos barracos flutuantes que surgem à margem dos
igarapés. Os capachos abandonam as soleiras, os pés das mesas e
cadeiras vão sumindo, as pontas das toalhas arrastando nas poças.
Nossa alegria só míngua quando os adultos dão cobro à enchente
desentupindo os bueiros e a água vai se recolhendo na boca dos
ralos, deixando de herança fina lama sobre os mosaicos da copa. Após
tantas correntes e corredeiras, triviais e domésticas, tantos
passeios ao cais flutuante, acompanhando o volume das águas, ano
após ano, nas amuradas do porto, vendo chegar e partir canoas,
catraias, batelões, gaiolas e navios de grande calado, não resisto
ao fascínio das viagens. Desejo outras cachoeiras que não a caseira
Tarumã de fins de semana.
Viajo atraída por remotos caudais,
véus de névoa e bruma. É como se as cachoeiras cantantes me
chamassem lá de dentro dos matos e florestas: Itiquira, Iguaçu,
Niagara. Turista afobada, experimento o clímax da surpresa, o rápido
êxtase aos pés do belo, ali debaixo de coroas de respingos, a saliva
generosa da natureza me cuspindo, enquanto afronto o perigo em
barcos mínimos e atrevidos. Da aventura sobram algumas fotos, tipo,
vejam não estou inventando façanha, não é nenhuma mentira. Coleciono
fotos, estratégia para documentar momentos de prazer. Aqui está uma:
eu molhando os pés no Jordão, rio que no Amazonas não passaria de
anônimo igarapé. Fico ruminando os versos de Pessoa: o mito é o nada
que é tudo. Esta, sai das águas doces para as salgadas: estou com a
irmã às margens do Mar Morto. Aí nos deitamos em régio colchão d’água,
o que humilha todos os artigos hospitalares homônimos. Mais que a
volúpia do contato com o líquido denso, cativa-nos o sossego da
segurança absoluta. Sobre o mar estéril, maciçamente mineral, nada
de cetáceos, peixes, moluscos, algas. Só nós duas, únicos seres
orgânicos a flutuar solitárias, sem o menor esforço, sem ameaça de
naufrágio ou medo de tubarão, no regaço de um mar tão morto que é
até mesmo incapaz de matar.
Ao rememorar doces convivências com a
água, transporto-me ao inverno de 67 em Paris. Tenho 30 anos e pela
primeira vez na vida o destino me apresenta à neve. Confesso: o
coração, dentro do peito tropical, se derrete de emoção igual a
sorvete. Enfim, vejo com meus olhos, sinto com minhas mão o que
desde menina é mito de Natal, arremedo de algodão nos galhos da
árvore carregada de presentes e prendas, referência onipresente nos
relatos da remota Europa. Lá vou eu pela rua, embrulhada em peles e
lãs, renegando o incômodo peso nos ombros, me sentindo o próprio
cabide sob a escravidão do casco, xingando o bafo de geladeira e o
cárcere das botas, quando maravilha! os flocos de neve principiam a
tombar de mansinho feito borboletas brancas sarabandeando, o céu
desabando pétalas e o maná bíblico descendo em silêncio, solene, num
gesto litúrgico de batismo. A suavidade é tal que suplanta a da
chuva, o toque da água não líquida bem mais sutil, mais
imperceptível. A suprema delicadeza com que me envolve o corpo não
deixa rastro. Não é por acaso que neve rima com leve, a finura do
gesto fazendo jus à palavra. O episódio acontece junto ao Musée
Cluny. Sinto-me muito especial, outra Dama do Unicórnio, ungida pelo
milenar manto do inverno. E o deleite é tamanho que esqueço a
carapaça das roupas, para mim armadura medieval. Levito em plena
rua. A idéia de que a água possa se condensar, se amontoar, dispor
de contornos, desenhar sua forma, perder a transparência, o brilho
de espelho, a lâmina mineral, a inquietação, me seduz
dramaticamente. Prodígio da natureza a me enfeitiçar. Delícia,
levá-la à boca misturada com mel e limão em prazerosos piqueniques
na montanha. Só equivalente a, sol a pino, lamber picolés de guaraná
e groselha, os rústicos cubos de gelo comprados a tostões nas
tavernas de Manaus. Volta-me o prazer de pastorear os lingotes de
gelo empanados na serragem, tal e qual gordos bifes d’água à
milanesa. Serviam para refrescar aluás, gingibirras e demais
bebericos de festas. Era tão bom encostar os pulsos no gelo a fim de
esfriar o sangue que vasculharia o corpo inteiro. Ver o gelo
urinando das carroças, ou a se desmanchar no mormaço das ruas, me dá
a certeza de quão artificial e transitória é a carga engendrada no
maquinismo da fábrica de cerveja, lá nos confins da cidade.
Décadas depois, atravesso árduos
invernos de gelo em Chicago. Só o aquecimento artificial permite que
a água circule nos canos. Recordo a chegada da primavera, a sensação
de alívio ao contemplar a fonte de Buckingham esguichando no ar
floração de altos jatos, o sussurro dos jorros ao cabo de meses a
fio de total inércia, o ímpeto das águas não mais paralíticas,
marmóreas, caladas. Penso neste país de águas tropicais sempre
soltas, rolando nas vastas bacias de caudalosas correntes e
afluentes mil, nos açudes, nos pequenos algibes e cacimbas, nos
olhinhos d’água, nas bicas e, sobretudo no Atlântico que lambe o
litoral leste com imponência oceânica.
Lavo minha alma em todas essas águas
livres e me comprazo com os miúdos fios d’água que brotam das
torneiras e me dão banho e enchem meu copo. E agradeço diariamente a
serena alegria do corpo limpo e da sede saciada. Eu, também água.
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