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Astrid Cabral


 


Relendo Tigre no Espelho, contos de Adrino Aragão



 

 

Desde o título nos defrontamos com o par de símbolos estruturador da coletânea: “tigre” que nos remete ao impulso vital, à força selvagem do ser, e “espelho”, palavra conotadora da reflexão, do conhecimento buscado e alcançado. No animal, a dinâmica do instintivo, da emoção. No objeto polido, a fria e serena racionalidade. É agenciando tal dialética que Adrino Aragão constrói histórias em que analisa o ofício do escritor, ora na perspectiva do narrador presente, ora na do autor oculto e onisciente.

No conto inaugural, de título homônimo ao da série, a dialética se potencializa. Tem-se aí um texto de ficção engenhosamente desentranhado da vida e obra do genial escritor argentino Jorge Luís Borges. Este surge como fantástico tigre, face a face com o duplo que lhe fornece o espelho, tudo, porém, numa relação tornada infinitamente mais complexa pela cegueira que se interpõe entre os dois. A cegueira que se encarrega de borrar a tênue linha que separa a realidade do sonho e que revela a extrema solidão do sujeito, entregue seja ao ruído de seres reduzidos a fantasmas, seja ao espaço transformado em labirinto pela escuridão. A rica problemática realidade X sonho, que tanto ocupou o pensamento grego e barroco (Platão, Aristóteles, Calderón de La Barca) e através dos séculos desafiou os artistas, é aí explorada com sutileza e mão de mestre. Como negar a imensa realidade do mundo subjetivo, esse continente oculto por onde os criadores se aventuram? O conto Tigre no espelho lida com a duplicidade do real em narrativa parabólica, o personagem central desdobrado numa operação espetacular. Assim o Borges que vive em carne e osso, mesmo cego, vê a si mesmo, e esse outro refletido se identifica como o Borges que escreve. Enquanto o primeiro protesta: “...O senhor não é real. O senhor é uma visão, um sonho...”, o segundo logo rebate: “Nada é mais real do que o sonho. Nem mesmo a realidade.” O paradoxo da cegueira vidente, topos clássico na literatura desde o Tirésias de Sófocles, e que encontra sua síntese poética no verso jorge-de-limeano “Fura-me os olhos para que eu possa ver melhor”, estabelece de modo contundente a questão da realidade não aparente, aquela apreensível por dimensão de natureza outra que a capacidade físicas das retinas.

É nesse território fronteiriço e móvel — entre a realidade imediata, mensurável pelos cinco sentidos, e a realidade gerada pelo sonho da fantasia criadora — que se espraia a ficção de Adrino Aragão: os saltos subjetivos de um tigre na platitude do espelho, o mimético do concreto. A afirmativa “não se fica sabendo onde termina a ficção e começa a realidade” explicita a interpenetração de planos que fascina o autor.

No conto A velha Remington justapõem-se o mundo do vendedor de máquinas e das tias e o outro do velho careca e da mulher de calcinha, personagens supostamente de carne e osso lado a lado àqueles filhos abstratos da imaginação. Mas não vigora hierarquia entre eles, a realidade sendo dupla, paralela, bilateral. Qualquer preferência por um dos planos acarretaria mutilação, empobrecimento. Eles não só coexistem como se interpenetram.

O recorte da realidade por ângulo anticonvencional é que leva o narrador-personagem a conversar longamente sobre sua situação de escritor com o gato de estimação em Você é testemunha, Ulisses. Dirigido a interlocutor não só imprevisível mas sobretudo inadequado, o monólogo arguto e brilhante adquire um viés altamente dramático. A precariedade do artista, no que se refere à inserção na vida pragmática e decorrentes marginalização e isolamento, aparece enfatizada no texto pelo monólogo incapaz de ser transformado em diálogo. Portanto, Ulisses, de gato, passa a representar, metaforica e metonimicamente, o inatingível público. Nada mais eloqüente que o desnível da comunicação para expressar a solidão do artista, condenado a pregar no deserto.

Em A Condessa a narrativa ultrapassa o contraste aparente entro o casal de personagens (o escritor cônscio da seriedade da literatura e a falsa condessa freqüentadora de lançamentos e que exige dos livros apenas entretenimento aprazível) para revelar a profunda realidade subjetiva que os aproxima. Afinal o escritor é um inventor de fantasias verbais e a condessa vive a fantasia de tentar ser quem não é. Assim sendo, ambos se entregam de corpo e alma a mentiras, ou melhor, à verdade da ilusão, ou quem sabe à estratégia salvadora, pois, segundo Cecília Meireles, a vida sé é possível reinventada. Eis, então, um casal sintonizado, pisando no duplo chão real e do sonho, e a sedução do conto decorre do desnudamento das aparências falsas. A falsidade da condessa, neutralizada no contexto, termina por desaparecer.

Quanto a Aranha tece a teia, vale lembrar mais uma vez a emergência do tema central da coletânea: o escritor e as contingências do ofício. O personagem narrador, quase sempre um duplo do autor, depõe e transfigura as próprias vivências num narcisismo de tigre no espelho. O espelho, ao devolver-lhe a imagem, traz concomitantemente a ambientação sócio-cultural que lhe serve de paisagem, a sua própria selva impenetrável e a difícil sobrevivência.

A barata, tal o que abre a coletânea, é um conto desentranhado da vida e da leitura. Urdindo um encontro entre Kafka e Poe, escritores de séculos diversos, o autor revela a liberdade total com que utiliza o tempo. A narrativa retoma a problemática literária, homenageando a tradição na figura dos grandes mestres, mas interpondo no depoimento deles a imaginação pessoal, criando um texto novo em cima de outros textos consagrados, numa técnica de palimpsesto verbal.

Em Meu contrato milionário, Adrino opta pela seqüência cinematográfica para arcabouço da construção narrativa. Desse modo a seqüência não se desenrola imperceptivelmente embutida no progresso da ação. Comparece sublinhada pelo corte de balizas cronológicas e especiais, emoldurando cenas bem definidas. Os acontecimentos são formatados em três etapas — introdutória, climática e conclusiva — nitidamente assumidas. AA lança mão de tal recurso para renovar a fórmula desgastada do conto maupassaniano de começo, meio e fim. O saldo episódico é a transformação da matéria-prima dos fatos objetivos em matéria artística literária. A morte vira tema. O assassinato gera o conto. Vê-se aí o flagrante da passagem de um nível a outro: D. J., o autor à caça de enredo e personagens, fecundado pelo impacto da vida, entrega-se ao processo germinativo da literatura.

Anotações para um conto, a seguir, de certo modo dá continuidade ao anterior, ao aprofundar a análise da passagem do vazio à concepção, da pré-estória à estória. Apresentando uma série de pequenos embriões ficcionais ou esboços de personagens, o autor-narrador opera uma transposição entre vida e literatura menos fulminante que a de Meu contrato milionário. Ocorre aqui a exposição de duas fontes, ou projetos de trabalho, que se alternam. AA enfoca a oscilação na escolha entre o escritor famoso em crise e o velho pescador. A solução comportará um traço conciliatório, pois o velho pescador sobrepõe-se devido à hipótese “talvez tivesse muitas outras histórias para contar”, peculiaridade inerente ao escritor.

O contador de histórias distingue-se por abordar a especialidade da criação ficcional confrontada com o gênero jornalístico. Reitera-se aí a problemática nuclear da ficção, sua absoluta liberdade na manipulação do real, em contraste com a submissão dos fatos, típica do jornalismo. Neste conto o gênero narrativo é delimitado em três instâncias: 1ª) quando o contador se defende diante do chefe (“eu não estava conversando, eu apenas contava uma história”); 2ª) quando o chefe do jornal afirma categórico: “uma coisa é escrever romances, e outra, escrever para jornal”; 3ª) quando o contador de histórias novamente se defende: “seu guarda, o senhor está enganado. Eu não estou fazendo discurso nenhum.” Note-se que as três afirmativas apontam sucessivamente para características intrínsecas ao gênero: 1) a intencionalidade da narrativa de ficção, possuidora de um projeto e uma articulação nem sempre presentes numa simples conversa; 2) o descompromisso com os fatos objetivos que, restringindo o jornalista, liberta o ficcionista; 3) a ausência do pragmatismo que faz do discurso um gênero voltado para a persuasão, para a palavra a serviço de uma causa extra-literária.

Por que não matei Olga?, conto que retoma o Iniciação de Olga de As três faces da esfinge, é magnífica ilustração das obsessões do inconsciente, em particular do poder exercido pela personagem sobre o seu criador, impotente diante da própria criatura. O que Adrino Aragão instaura nesse conto é a perfeita ilusão de autonomia da personagem. Olga, de própria voz, instiga e desafia o autor-narrador. É graças à individuação dos registros no encadeamento dos monólogos alternados que a ruptura umbilical se torna verossímil e eficiente. O tratamento estilístico dado a Olga reforça-lhe a objetividade, primorosamente delineada desde o “Iniciação de Olga”.

Antes que se apague desenvolve em forma de diálogo unilateral (interlocutor oculto) o drama do criador tornado impotente pela doença. Ao vitimar um artista plástico, a cegueira parece mais crucial que a de Borges. AA abarca nesse relato as limitações que frustam e mutilam o espírito criador.

O conto que encerra a coletânea, As tias, omitindo as preocupações metaficcionais, afasta-se tematicamente dos outros. O protagonista, fulcro da fixação de suas velhas tias, é apresentado como sendo poeta, mas tal condição é completamente abafada por outra bem mais importante, a de o homem no esplendor da virilidade. O sobrinho Avelar lembra uma fera enjaulada, haja vista a incrível força vital contida no parco espaço da casa. A narrativa enfoca o desequilíbrio e a decadência familiar e prima por forte carga sugestiva: o intenso erotismo subliminar, subjacente nas frustrações das velhas e no exibicionismo e sadismo do jovem. O acerto de AA na elaboração do conto reside primordialmente no recorte da realidade através do uso de detalhes simbólicos, e na dosagem entre o que é dito e o que é silenciado.

Para concluir, ressaltamos a unidade temática da coletânea, articulada em torno da consciência do fazer literário, preocupação que se tornou radical na modernidade. Paralelamente, cabe mencionar a riqueza das variações formais adotadas na construção das estórias, todas vazadas em linguagem despojada e contida, em estilo coloquial nobre. Adrino Aragão, com sua garra criadora, é certamente o tigre ágil e poderoso que se auto-examina nesta série de espelhos.

 

 

 


 

26/07/2005