Astrid Cabral
Primazia do mundo interior (prefácio)
O que ressalta, à primeira leitura de
Lição de vida, é a profunda preocupação moral que move
a pena de seu autor, Hélion Póvoa. No mundo contemporâneo, marcado
pela emergência de valores materialistas e mercantilistas, estes
poemas representam um baluarte de resistência contra a progressiva
demolição dos princípios éticos cristãos de nossa sociedade.
Refletem seus versos forte compromisso com o ideal humanista, para
muitos obsoleto, mas que precisa ser resgatado e cultivado com a
maior urgência, se quisermos afastar o risco da selvageria urbana do
pós-moderno.
Com a vida inteira dedicada à ciência,
através da pesquisa e de sua aplicação no campo da medicina, Hélion
Póvoa refreou os dons poéticos, só se entregando a eles tardiamente,
no que se irmana a antecendentes ilustres como o poeta português
Antônio Gedeão e, entre nós, o bardo cearense Soares Feitosa. Por
outro lado, esse rico encontro da ação com a contemplação, da
ciência com a arte poética, conta com a precedência de Pedro Nava
cuja memória H.P. homenageia em dois textos, e que, além de nosso
maior memorialista, foi também reconhecido como poeta por Manuel
Bandeira. Não se pode deixar de lembrar aqui o maior representante
dessa dupla vocação: o poeta/médico Jorge de Lima, que nos legou
obra de imensa riqueza e extrema genialidade, ainda por ser
devidamente reverenciada.
Em 1982, ao proferir em versos o
discurso de posse na Academia Nacional de Medicina, Hélion Póvoa
inaugura solenemente o percurso literário ao declarar a decisão de
se entregar também à poesia, até então sufocada pela intensa vida
profissional. A partir de 84, começa a publicar sua obra poética, em
que Lição de vida figura como quarto livro.
Reiterando a linha do anterior
Missão na terra , e em total coerência com o título,
Lição de vida apresenta-nos uma poesia de cunho magistral.
Isso decorre, primeiro pelo registro lingüístico culto, revestido de
solenidade ex-cátedra, mas que ao mesmo tempo guarda a clareza
referencial sem concessões a elipses, enigmas e ambigüidades, tudo
que poderia gerar hermetismo e impedir a comunicação. Em seguida,
pela adoção de uma perspectiva com distanciamento ao tratar dos
temas. Assim sendo, com exclusão de uns poucos poemas onde se
permite revelar a experiência pessoal (penso especialmente naqueles
em que discorre sobre o território doméstico em Botafogo, alude ao
diabetes, ou deixa vazar a fé religiosa através de orações), Hélion
Póvoa define e disserta sobre assuntos tomados de forma geral e
abstrata. Por isso mesmo observa-se em seu texto a restrita
freqüência da primeira pessoa do singular, típica do “eu” lírico e
válvula dos transbordamentos emotivos. Há, sim, a preferência pelo
pronome na forma plural, já que o “nós” escapa ao individualismo e
amplia a referência, alcançando a humanidade inteira, graças à
omissão de um sujeito coletivo não explícito. Prevalece nos poemas o
discurso em 3ª pessoa, decorrente da objetividade científica
compatível com o pensamento raciocinante, seguido pela enunciação em
2ª pessoa, requerida pelo tom persuasório e sapiencial dos
conselhos.
Hélion Póvoa elabora uma poesia
centrada na análise e celebração da natureza humana. Envereda de
maneira reflexiva pelo arco-íris da realidade psicológica, passando
também, em menor escala, pelo campo biológico. Neste, seus poemas
valem-se da linguagem característica da área médica, de que o autor
extrai efeitos originais de ordem fônica, utilizando com ironia
raras palavras proparoxítonas, que nos remetem ao poeta Augusto dos
Anjos com seu vocabulário surpreendemente inovador para a época.
Outros vestígios da vivência médica podem ser detectados em algumas
imagens baseadas em semelhanças anatômicas, como a do ódio comparado
ao câncer e a da mente fanática que se contrai como pupila sob o
efeito da luz.
No entanto, o olhar poético de Hélion
Póvoa dirige-se preferencialmente para a interioridade. É a imensa
gama de sentimentos positivos e negativos, a dinâmica do que se
convencionou chamar de alma, que ocupa sua atenção, levando-o à
análise e ao canto. A simples relação dos títulos das composições já
nos evidencia tal preferência temática: tranqüilidade, amor,
amizade, felicidade, humildade, angústia, sofrimento, liberdade,
raiva, medo, frustração, gratidão.
Conforme expressa de modo eloqüente:
“Ninguém encontra um retiro integral
Mais perfeito que o interior de sua alma”
Para H.P. o interior humano é “maior
que o céu” e tal antropocentrismo explica, a meu ver, o ofuscamento
da paisagem e a percepção do mundo exterior pouco enfática em seu
texto. Com exceção do poema “Pássaros em Botafogo”, a natureza do
não-eu só comparece em função coadjuvante de metáfora. Leia-se o
belo poema “Chuva no mar”, em que o poeta não focaliza nem a chuva
nem o mar, valendo-se de ambos, ao mesmo tempo em que consola um
amigo querido, para mostrar-lhe o contraste existencial entre o
infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Mesmo a presença dos
pássaros, no mencionado poema, impressiona H.P. sem impacto, isto é,
através do canto, fragmento parcial da realidade daqueles seres,
pois despojado do visual de forma e cor, do tátil das plumas, enfim,
de qualquer concretude. As “abelhinhas”, não são a rigor abelhinhas,
mas apenas o nome simbólico de uma instituição beneficente. No poema
que abre e intitula o livro, a borboleta a romper a duras penas o
casulo, mais que o instante fenomenológico do pequeno animal
afirmando a sobrevivência, é o exemplo do sofrimento humano que
conduz à elevação espiritual. O mesmo processo da natureza exterior
tomada secundariamente, como demonstração de uma realidade íntima
superior, ocorre com a coruja, símbolo da sabedoria inerente ao
silêncio.
Não surpreende que Lição de vida
esteja povoado de anjos, esses seres alados cuja existência
incorpórea ocupa os redutos da imaginação, sem conseguir roçar
nossos cinco sentidos. Vê-se pois que o manancial criador de Hélion
Póvoa jorra, não das sensações causadas pela observação do mundo
imediato circunstante, porém do abstrato mundo das idéias. Platão em
vez de Aristóteles. A preferência pelo conceitual aparece nítida nos
versos de “Discurso”:
“Jamais terá sucesso um orador,
Cuja palavra for sobremaneira
Maior que idéias em seu esplendor!”
A fascinação pelo conceito leva o
autor a priorizar as idéias sobre a palavra. Daí talvez a ausência
de inquietação formal na fatura dos versos que seguem a tradição,
embora o faça com notável liberdade, tanto assim que os decassílabos
são pouco ortodoxos e exibem flutuação métrica e acentual.
Lição de vida
distingue-se sobremaneira pelo aspecto sapiencial vinculado à
pregação ocidental bíblica. É a problemática ética que sobrepuja a
estética. O poeta está devotado ao crescimento do espírito, pois o
grande valor existencial reside na “bravura interna”. Graças à
intensa religiosidade, que desponta em inúmeros poemas, o autor não
questiona nem se rebela com a impotência humana diante da dor. Para
ele, esta parece ser “a via da verdade”. Apoiado na sólida fé da
existência de Deus, na esperança de redenção pós-morte, pode
afirmar:
“ A dor é o fogo que nos leva ao céu”
A terceira virtude teologal, a
caridade, comparece na forma do amor cristão:
“O princípio que de modo singelo
nos redime e nos reconcilia com a vida”
Estamos, portanto, diante de um livro
de surpreendente elevação moral, um livro necessário por nos
reintroduzir num mundo sacralizado, hoje em vias de se extinguir,
mundo onde os valores nascem da aspiração ao divino e no qual os
homens se acreditam feitos à imagem de Deus.
Leia Helion Póvoa
Leia Astrid Cabral
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