Aurelino Costa
Aurelino Costa: a poesia que
rescende
por Alberto Augusto Miranda
Na Raíz do Tempo é um poemário só
legível para quem preserva capacidades sensoriais que o maioritário
modo de vida tende a anular. O frenesim do nada, a velocidade do
vazio, o tempo que nos consome, a desnoção do efémero, são incisivos
obstáculos à indagação de nós (Raíz) e do nosso estar (Tempo).
A sensação mais trespassante da
leitura deste livro é apreendê-lo como reserva ecológica, como lugar
indestruído, como presença e retorno da memória, como ponto onde se
futura a linha do horizonte traçada com o lápis da recepção
emocionada.
Se tivesse de eleger um elemento
condutor desta lírica tantas vezes bucólica, mas sobretudo rigorosa
e restituinte, esse elemento seria o cheiro, esse cheiro-cheiro que
as cidades contaminaram com as pestes químicas e físicas, e a
globalização transferiu, em processo de real transfert, para as
redutoras áreas do virtual. Como conseguir o re-anima dos princípios
quando eles deixaram de estar inscritos no corpo? Como conseguir
percepcionar a vida quando não é possível que essa mesma vida, mais
o seu residual fio histórico, seja exposta na janela da noesis?
É por aqui que, antes do mais, Na Raíz
do Tempo, é um documento dos sentidos inadulterados, o momento real
da recepção do vivido, transportado por todos os sensores para a
síntese poética, erguendo-se do húmus:
com casca
carvalho
eucalipto
E pinheiro
E com mosto
E com lama
Estamos então na presença de uma
poesia que rescende e, rescendendo, dinamiza toda uma sinergia
sensorial que arde e nos recoloca em ardência, nos redivive a partir
do chão e do lume "que flameja/nas narinas".
Este lume não se encontra anulado e é,
em metáfora, o verdadeiro símbolo existencial. Regressa-se ao querer
regressar por esse fogo que, na desvida estrutural dos sitemas, se
encontra recalcado, só visualizável na dimensão onírica ou em
rituais de um só praticante. Tal é a solidão e o isolamento de quem
a si próprio se não exerce, de quem habita o ruído e dele se arrisca
a fazer parte. E este estruturados momentos da vida, são afinal
momentos fora do Tempo já que o Tempo é vida e Silêncio, é espanto e
sensação, é surpresa e poesia:
Regresso ao Tempo
Em que fui marcado
Pela subtileza
Do silêncio
(...)
Regresso ao Tempo
E pasmo
Neste Silêncio
Este momento de ao momento tornar,
constitui-se em embraiagem de um círculo viajeiro que passará sempre
pelo lado sacro da unção, isto é: da fusão entre o corpo do sujeito
e o corpo magmático-terrestre que o sujeito recebe. Estamos num dos
princípios lapidares de qualquer teoria da estética da recepção, tal
como Herbert Marcuse, um pouco sobre Teodor Adorno, acabou por
enunciar.
Mas é indelével a retoma da inocência
no momento do Regresso, no momento do Tempo. Deixam de ser a
palavras a quererem dizer e desenhar, para ser o próprio corpo o
lugar e o instrumento do desenho:
E a língua
Pela linha
De teu corpo
Só depois desta retoma da inocência os
lugares se tornam lugares diversificados e com cheiros e pigmentos
sentidamente diferentes. Na geografia da inocência de Aurelino
Costa, veja-se este rigoroso documento de uma paisagem insular
(Ribeira Brava):
Teu corpo
-ócio de alga e sal
na vastidão do azul
permanece
E o tacto do sol
Na vulva da ilha
Bebe-se.
Já desde o seu Poesia Solar que
Aurelino Costa se situa entre os homens como Diógenes de Laércio:
não lhe tirem aquilo que não lhe podem dar: o Sol. Sabe-se que olhar
para o sol é correr o risco de ficar cego. Mas se não é possível
vê-lo, leia-se esse Sol que se espalha e derrama e circuncisa neste
poema:
Sol de Bizâncio
A estalar
Na calda
Do medo
Sol de Bizâncio
Doendo e
Duende
Num duelo
de medo
Sol de Bizãncio
Num
x
De silêncio
Seja pela luz seja pelo reflexo da luz
ou em situação de contra-luz, como no conjunto poético dedicado a
Pitões das Júnias, é sempre a claridade que emerge à superfície
lírica como se tratasse de uma exigência que a poesia faz. Este
conjunto poético brilha de novo pelos cheiros e pela notável
concisão que aproxima cada um dos seus poemas da forma difícil e
sintética dos hai-ku orientais:
O vento escreve
Silêncio
Na Neve.
ou, na segunda sequência, o comum, a fusão, a comunhão:
Pêlo e
Viagem dúctil
Sobre a neve,
O lábio estreia
Outro lábio
E assim se perde
A grandeza do diminuto passa
igualmente pela nomeação de cada vento que o linho apanha no
"contorno/do cio" no intenso de um apelo telúrico, porque a vertente
tellus é o chão fundamental, é a massa da alma. E, repare-se, a
palavra 'alma' é anagramável em 'lama'. Não a lama romântica tão ao
gosto dos decadentes, mas a lama-matéria palpável e saborosa e
sagrada:
E com mosto
E com lama
Ungi minha alma
Que é deste mundo.
E é exactamente nesta capacidade de
expressar o imanente, muito para além do imanente, mas nunca em fuga
ao corpo e suas pulsões de emissão ou recepção, que se realiza a
transcendência da poesia de Aurelino Costa.
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