Manoel de Barros
O tema da minha poesia sou eu
mesmo
Entrevista concedida a
André Luís Barros
A natureza nunca mais foi a mesma depois de passar
por suas frases. O poeta pantaneiro Manoel de Barros, que está
lançando um novo ajuntamento de versos e vida, o Livro sobre nada
(Editora Record) , se considera acima de tudo um "fazedor de
frases": "A frase para ser boa precisa ser uma coisa ilógica, o
ilogismo é muito importante pois a razão diminui a poesia", ensina.
Avesso a entrevistas, quanto mais por telefone, Manoel de Barros,
considerado por muitos o maior poeta brasileiro vivo, concordou em
concedeu conversar com o caderno Idéias, por telefone, de sua casa
em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde vive a quatro horas de sua
fazenda de criação de gado e costuma sair à tarde para
"desenferrujar" e bicar umas pingas com amigos. Com simplicidade, o
autor de livros como Compêndio para uso dos pássaros (1960),
Arranjos para assobio (1982), Livro de pré-coisas (1985) e O
guardador de águas (1989) falou sobre paixões literárias, o gosto
pelo ócio e por programas divertidos na televisão, como Os
trapalhões e até o mexicano Chaves e lembrou até um insuspeitado
passado no Partido Comunista. "Mas nunca fui afeito a grupos,
gerações, não podia mesmo durar muito naquele partido. Hoje,
conquistei o ócio, o que é muito importante para o poeta", comemora.
André Luís Barros - O senhor só ficou
famoso como um grande poeta depois dos 70 anos. Isso foi algo
planejado, ou aconteceu por acaso?
Manoel de Barros - Isso é negócio do
meu temperamento. Nunca tive projeto, só livro. Também nunca achei
que precisasse me isolar no Pantanal para compor melhor. Sou
pantaneiro, nasci aqui, só podia viver e escrever mesmo sobre as
coisas daqui. Mas nunca tive preocupação em aparecer muito, ser uma
pessoa conhecida, isso é sincero mesmo. Eu queria só fazer poesia. A
minha vergonhez explica muita coisa. Sou tímido por temperamento, é
possível que só seja poeta por causa disso. Sou um ser abúlico,
tenho minhas contradições e tento me encontrar através da poesia. É
claro que sucesso é bom, ser amado, admirado pela poesia é bom, quem
disser que não está mentindo. Fui descoberto de repente, as pessoas
começaram a me perceber. Nunca na minha vida fui de participar muito
de grupo. Acho que em poesia também não pertenço a nenhuma geração,
a tal geração de 1945 não é a minha, e vejo outros poetas, como João
Cabral de Melo Neto, que não é de geração nenhuma. Aliás, como
classificar o Rimbaud? Em que geração classificamos o Augusto dos
Anjos? Eles são simplesmente grandes poetas.
ALB - O senhor conheceu, tem uma grande
admiração e até prometeu um livro sobre João Guimarães Rosa. O
primeiro livro dele, o inédito Magma, será lançado em breve. Onde
está o livro prometido?
MB - Foi adiado. O Ênio Silveira tinha
me sugerido fazer esse livro e eu topei o negócio, fiquei animado.
Mas quando fui escrever, em vez de ser minha, a frase que saía era
do Rosa. É que eu tinha relido muita coisa dele e fiquei impregnado.
Não convém isso, não é bom porque você acaba mergulhado mesmo na
obra do autor, acaba afogado. Anos atrás eu tinha tentado fazer um
ensaio quase lingüístico sobre o conto Cara-de-Bronze, do Rosa, de
que gosto muito. Mas me embananei todo, no meio. Eu não falo mais
que três línguas e o Rosa conhecia língua demais, achei que seria
possível fazer o ensaio mas ficou muito difícil. Disseram que o
Magma não é tão bom quanto os outros livros do Rosa. Realmente ele
tinha talento mesmo era para a prosa, e o engraçado é que ele foi
poeta no fim da vida. Geralmente o sujeito é poeta aos 18 anos,
quando aparecem as espinhas, e depois pode virar prosador. Mas há
versos perfeitos no livro Ave, palavra, seu último livro, e Tutaméia
e A terceira margem do rio são pura poesia. Eu sou mais de fazer
frases, sou bom em criar frases.
ALB - O seu trabalho é mais
fragmentado.
MB - Cada vez mais. O próprio mundo
está obrigando a gente a se fragmentar. É uma falta de unidade, o
homem moderno não tem mais as grandes unidades, como Deus. A gente
não tem crença em mais nada, aliás, toda a arte deste século é
fragmentada, ninguém defende mais uma ideologia, hoje. O homem não
acredita mais nem em ideologia, as religiões estão se fragmentando,
o protestantismo está se dividindo, o cristianismo.
ALB - O senhor é religioso?
MB - Sim, tenho formação católica,
estudei dez anos interno em colégio de padre. Evidente que depois de
alguns anos eu era comunista. Foi minha fase libertária, fui filiado
ao Partido. Foi ali que conheci o Carlos Lacerda. O Apolônio de
Carvalho me botou lá, depois ele foi da dissidência do Partido. Fui
companheiro do Lacerda, que na época era muito diferente do que ele
se tornaria, era comunista mesmo.
ALB - Até que ponto a despreocupação
com o dinheiro é importante para o poeta?
MB - Levei vários anos até conquistar o
ócio, isso é importante para o poeta, ele não pode ter a cabeça
virada só para coisas a resolver. Fiquei muitos anos arrumando minha
vida, saldando dívidas, atendendo papagaio. Há oito anos, cheguei
aqui pra Mato Grosso, tomei pé aqui. Agora estou vagabundo, tenho
direito a isso. Herdei uma fazenda, em campo aberto, terra nua, sou
fazendeiro de gado, vaca, não sou "o rei do boi, do gado" mas vivo
bem. Este é o meu caso: enquanto estava tomando pé da fazenda não
escrevi uma linha. Mas sabemos de outros casos, como o Dostoiévski,
que escreveu perseguido por dívidas, ou o Graciliano Ramos, que além
das dívidas ainda tinha família pra criar.
ALB - Qual é o tema do poeta?
MB - O tema do poeta é sempre ele
mesmo. Ele é um narcisista: expõe o mundo através dele mesmo. Ele
quer ser o mundo, e pelas inquietações dele, desejos, esperanças, o
mundo aparece. Através de sua essência, a essência do mundo consegue
aparecer. O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro.
Então, não é que eu descreva o Pantanal, não sou disso, nem de
narrar nada. Mas nasci aqui, fiquei até os oito anos e depois fui
estudar. Tenho um lastro da infância, tudo o que a gente é mais
tarde vem da infância. Nesse último livro meu, Livro sobre nada, tem
muitos versos que vieram da infância. Tem um poema que se chama "A
arte de infantilizar formigas". Num vídeo que fizeram sobre mim, o
rapaz chega uma hora que pergunta: "Escuta aqui, o senhor escreveu
que formiga não tem dor nas costas. Mas como é que o senhor sabe?".
Outro rapaz me escreveu do Rio, diz que freqüenta as aulas de um
professor muito inteligente em energia nuclear, física, poesia e
romance, e ele fez a pergunta, que é um verso meu: "Professor, por
que a 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso?". O professor, que
tinha estudado Einstein e outros autores, disse: "Essa pergunta não
vou responder, é absurda". Ou seja, encabulou. Creio que a poesia
está de mãos dadas com o ilógico. Não gosto de dar confiança para a
razão, ela diminui a poesia.
ALB - Como é seu dia-a-dia?
MB - Pela estrada, chego a minha
fazenda em quatro horas, estou bem perto do Pantanal. Agora o clima
é seco, e dá para correr de carro. Mas quando a estrada enche, só de
avião. Fico em casa lendo, escutando músico, vejo televisão. De
manhã, fico escrevendo, terminando livro, fazendo entrevista.
ALB - Hoje, o senhor lê que autores?
MB - Já li muita coisa séria, além dos
escritores, li filosofia, Nietszche, Kant, Walter Benjamim, Adorno,
essas coisas. Mas hoje tô lendo mais porcaria mesmo, quero descansar
a cabeça. E estou com a vista meio ruim. Vejo também muitas coisas
engraçadas na TV, o Didi e o Dedé (Os trapalhões), o Chaves, sabe
quem é?, aquele chato mexicano. E escuto muita música. De tarde,
saio pra tomar umas pingas, enquanto meu fígado não arrebentou. Mas
às vezes sofro aqui nessa cidade. A poesia faz da gente uma espécie
de mito, e as pessoas acabam fazendo da gente uma imagem diferente
da realidade. Tem gente aqui que pensa que eu vivo isolado, sozinho,
sem amigos, falam que eu sou intratável. Não sou isolado, não.
ALB - Como nasceu seu amor pelo
trabalho da linguagem?
MB - Sempre tive uma preocupação com a
palavra, com as frases. No colégio interno, os padres me deram o
Padre Antônio Vieira para ler. Ele era um grande frasista, se
preocupava com a ressonância verbal interna das frases. Em
linguagem, ele muitas vezes não era tão católico assim. Depois que
comecei a ler o Vieira não parei mais de prestar atenção nas frases.
Sou um fazedor de frases. O que é o verso? É uma frase, uma unidade
rítmica, que tem como característica ser ilógica. O ilogismo é muito
importante para o verso.
ALB - O senhor citou o poeta francês
Rimbaud. Fale um pouco dele.
MB - Foi o poeta mais importante para
mim. Aprendi com ele uma certa promiscuidade dos sentidos na
natureza. Ele tinha uma linguagem própria, toda sua, aquela coisa do
"trouver la langue" ("encontrar a língua").
ALB - O senhor citou também João Cabral
de Melo Neto. O que acha de sua obra?
MB - O Cabral é o maior poeta
brasileiro de todos os tempos. É um arquiteto da palavra, sabe o que
faz com ela. Tem um ritmo dele, totalmente dele, é diferente de
todos os outros e tinha que ser, pois ele é um ser. João Cabral é
muito limpo.
(in Caderno Idéias, Jornal do Brasil)
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