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Batista de Lima

 

Bopp e a evolução dos estudos gramaticais

 

 

 

As primeiras notícias consistentes de estudos gramaticais nos remetem à Grécia antiga, mais precisamente ao Século V a.C., quando a gramática, como "a arte de escrever” (Lions, 1979:9), era vista como uma parte da filosofia. Daí, hoje, a gramática antiga ser denominada por alguns estudiosos, como é o caso de Chomsky (1977:28), de "gramática filosófica", mesmo que os outros a chamem de "gramática tradicional", caso de John Lions (1979:4).

No Crátilo, de Platão (429-347), a.C., já se nota um certo privilégio com relação às onomatopéias, numa clara aproximação entre as palavras e as coisas por elas representadas, o que se conclui que a sua escola "naturalista" já defendia implicitamente o fenômeno da motivação significa tão negada modernamente. Também se observa em Platão, uma distinção entre substantivo e verbo o que alude a sujeito e ação respectivamente.

Ainda na Grécia daquele tempo, a questão dos gêneros dos nomes já despertava interesse entre os filósofos. Por isso que se atribui a Protágoras, sofista do século V a.C., a distinção dos três gêneros: masculino, feminino e neutro. Foi, no entanto, Aristóteles (384-322 a.C.) quem adiantou os estudos de Platão, em torno das classes gramaticais estabelecendo como conjunções qualquer coisa que não fosse substantivo ou verbo. Eram as conexões. Depois "com Dionísio, houve o acréscimo do advérbio, do pronome e da preposição" (Lions. 1979:12). Não se deve esquecer que antes disso, no entanto, surgiu com os estóicos, o artigo. Também foram os estóicos que estabeleceram diferença entre significante e significado, apregoando eles que a relação entre palavras e coisas era puramente arbitrária.

Os estudos gramaticais em Roma tiveram seu momento culminante, por volta do século 1 a.C., quando Varrão, sob influência grega, escreveu o estudo De língua latina. Depois disso, a gramática só foi Ter outro momento de marcante revitalização, através dos Mestres de Port Royal (1660) com a publicação Gramaire Générale et raisonéé, "com o fito de demonstrar que a estrutura da língua é um produto da razão". (Lions, 1979:13) Esse foi o último grande acontecimento em torno da gramática tradicional ou filosófica, pois no início do século XIX surge Bopp com a gramática comparada, trazendo uma visão mais historicista dos estudos gramaticais e abrindo perspectivas para o surgimento dos estudos lingüísticos.

Ao tempo de Bopp, a questão da arbitrariedade e da motivação ainda se arrastava. Como, segundo Benveniste, "a Lingüística nasceu da filosofia grega" (Domingues, 1991:329), essa grande questão remonta àqueles tempos clássicos com a discordância entre Platão (linguagem natural) e os estóicos (linguagem convencional). Uma coisa é ceda, nesses momentos iniciais de estruturação da gramática, seus princípios levavam-na a mais pensar que falar. Essa ênfase essencialista dominou a gramática até o aparecimento das idéias de Bopp.

Foi então que Bopp preferiu o fenômeno à essência, procurando estudar a língua por si mesma, através da sua fala. Para conseguir seu intento, ele começou por comparar diversas línguas tradicionais, procurando descobrir seus pontos de intersecção e suas estruturas mais remotas. Para isso, o privilégio anterior dos estudos gramaticais, que recaíam sobre o significado, passou a priorizar o significante e aos poucos a filosofia da escritura foi se ampliando em lingüística da fala, inaugurando-se assim, com Bopp uma nova idade na arqueologia lingüística, a idade da história de que nos fala Benveniste (Domingues: 1991:331). A gramática passa a se preocupar mais com o signo, as flexões, as raízes etc.

Ainda privilegiando a fala, Rousseau no seu Ensaio sobre a origem das línguas depende que:
 

A gramática não deve ser tida como a arte de pensar, mas como a arte de falar, e que em sua origem, a língua não é um instrumento de conhecimento, mas um instrumento de comunicação, veículo dos afetos e dos sentimentos e não da razão e do pensamento. Sendo o que ela é, língua de poetas e não de geômetras, e nascendo não das necessidades práticas dos homens mas da abundância do coração e das exigências morais, os homens ao falarem não começam por racionam mas por sentir, e não faia fome nem a sede, mas o amor o ódio, a piedade, a cólera etc., que lhes arrancaram as primeiras palavras. Eis por que segundo ele, as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas, e eis por que suas primeiras expressões foram os tropos, e o sentido próprio o último a nascer (Domingues, 1991:333).
 

Na esteira desse pensamento de Rousseau, Bopp procurou em línguas mais antigas, nas suas fontes mais primitivas, as raízes pontos de intersecção que clareassem a origem dos falares. Foi assim que surgiu sua Gramática comparada, comprovando a solidariedade do sistema lingüístico indo-europeu. Através desse estudo, Bopp concluiu que o Sânscrito, entre as línguas comparadas, é a que mais se faz presente no conjunto geral, muito mais que o Latim, o Grego e o Hebraico. A língua sagrada dos hindus é uma espécie de irmã mais velha de todo o sistema lingüístico estudado na Gramática comparada.

Entre as conclusões a que Bopp chegou na sua Gramática comparada uma delas é que há três tipos de línguas, relativamente às flexões e afixões. Primeiramente uma língua pode ser justapositiva, quando agrega os afixos à raiz, como é o caso do Chinês e do Basco. Depois pode ser flexiva quando flexiona internamente, o radical, como no Sânscrito e no Celta. E finalmente um somatório dos dois casos anteriores, mistura de flexões e afixações, como ocorre no Árabe. Outra conclusão é de que "o estudo de um sistema lingüístico qualquer pode dar-se em duas direções ou começa pela palavra (etimologia), ou pela estrutura (sintaxe)” (Domingues, 1991:339), ou seja, ou pela palavra, tendo a raiz como seu elemento irredutível, ou pelas relações que ela estabelece. Bopp, portanto, se preocupa com o mistério das raízes.

Com Bopp houve também uma preocupação com o verbo "ser". Ao longo dos tempos, diga-se na Gramática Geral, esse verbo era privilegiado. Não era verbo de mortais. "Ser" era divino. Para os mortais os verbos eram outros, principalmente "estar", impregnado de transitoriedade. Os outros verbos tinham que contar com o auxílio do verbo "ser". Assim, antes de Bopp dizia-se "ele é cantante", "ele é dançante", para depois de Bopp, a Lingüística histórica cravar "ele canta", "ele dança" (Domingues, 1991:341). O verbo "ser”, desta forma, perdeu seu pedestal divinizante e nivelou-se aos outros verbos da Gramática, apesar de em alguns casos, falantes posteriores tentarem, vez por outra, fazer uso desse verbo com essa conotação essencialista.

O trabalho de Bopp em esboçar uma primeira gramática comparada de línguas indo-européias como resultado de suas pesquisas durante a estada em paris, de 1812 a 1816, levou-o ao contato com sanscritistas e orientalistas parisienses que muito contribuíram para sua pesquisa e para conclusões surpreendentes. Uma delas é de que as flexões são antigas raízes. É por isso que ele afirma:
 

se a língua utilizou, com o gênio previdente que lhe é pr6prio, signos simples para representar as idéias simples das pessoas, e se nós vemos que as mesmas noções são representadas da mesma maneira nos verbos e nos pronomes, podemos concluir que a letra tinha na origem uma significação e que se manteve fiel a esta (Kristeva, 1969:280).
 

Há, no entanto, na gramática de Bopp algumas lacunas impreenchidas. Uma delas responde pela ausência quase total de estudos fonéticos no seu trabalho. A preocupação dele é em torno de flexões, raízes e etimologias comparativas. E esse seu penhor se faz presente logo no prefácio da primeira edição da sua Gramaire comparée des langues indoeuropéennes, de 1933, ao afirmar:
 

proponho-me fornecer nesta obra uma descrição do organismo das diferentes línguas que estão nomeadas no título, comparar entre si os fatos da mesma natureza, estudar as leis físicas e mecânicas que regem estes idiomas, e procurar a origem das formas que exprimem as relações gramaticais. Resta apenas o mistério das raízes... (Kristeva, 282).
 

Bopp, no entanto, não ficou só por aí, já que em seu outro livro, Sistema de Conjugação do Sânscrito, em 1816, mesmo se concentrando apenas na língua sagrada dos hindus, ele apresenta, segundo Foucault (1992:298) uma série de critérios que caracterizam internamente as distinções entre as línguas, quais sejam:
 

proporção entre os diferentes sons utilizados para formar palavras (há línguas de predominância vocálica e outras de predominância consonântica), privilégio concedido a certas categorias de palavras (línguas de substantivos concretos, línguas de substantivos abstratos etc.), maneira de representar as relações (por preposições ou por disciplinações), disposição escolhida para colocar as palavras em ordem (quer se coloque de início, como os franceses, o sujeito lógico, quer se dê a primazia às palavras mais importantes, como em latim) (Foucault, 1992:298).
 

Dessa forma se distinguiam as línguas entre si, pela geografia, pela história, pelo poder dos mandatários, pelo grau de liberdade dos povos.

Ainda a partir de Bopp, as vogais passaram a ter um papel mais importante na linguagem, pois ao valorizar a fala, o lado sonoro dessa linguagem foi privilegiado, enquanto antes, para a gramática geral, a linguagem nascia quando a letra era reproduzida com o ruído da boca. Ruído é consoante. E ao ser articulada essa consoante, necessita ela da ajuda do som vocálico. Mesmo uma língua consonantal como o hebraico, na escrita, ao ser articulada ela adquire sonorizações, o que corresponde a sons vocálicos. Foi isso que Bopp constatou que na maior parte das línguas, as raízes trazem no mínimo uma consoante ao lado de uma vogal, essa vogal podendo ser inicial ou terminal. Assim, o estudo das raízes das palavras atrelado à análise das flexões e das derivações fez com que a etimologia deixasse de ser "um procedimento regressivo em direção a uma língua primitiva" (Foucault, 1992:304) ou ao primitivo dessa língua para ser o estudo da diacronia lingüística onde se inclui a sua própria evolução.

Nessa evolução, está presente o espírito do povo que o anima. Os sentimentos e os percalços existentes no seio deste povo falam através da língua. A língua é fala de um povo, de uma nação. Daí, a afirmativa de Octávio Paz (1982:36) de que "os Impérios e os Estados estão feitos de palavras: são feitos verbais". E diferentemente do que se imaginou um dia, as mutações de uma língua não são obra apenas da elite dos sábios, dos viajantes, dos mercadores, dos exércitos vitoriosos, mas principalmente daqueles que murmuram e mourejam, no dia-a-dia, na mãe terra ou mesmo nas metrópoles, ou seja, quem dá esplendor à língua é o povo. Daí, a conclusão de Foucault (1992:306) de que "no momento em que se definem as leis internas da gramática, estabelece-se um profundo parentesco entre a linguagem e o livre destino dos homens".

Diante dessa colocação de Foucault, pode-se passar de Bopp a Saussure, tomando primeiramente como ponto de partida, o elo de ligação mais consistente entre os dois: a valorização do significante. No seu Curso de Lingüística Geral, de 1916, Saussure "revela a sua preocupação de determinar o valor da Lingüística e de distinguí-la de todas as outras ciências" (Cardoso, 1997:66). Começa tratando a língua como sistema e objeto do discurso da lingüística, procurando encontrar seu lugar entre os fatos humanos. Saussure procura filiar a Lingüística à ciência geral dos signos, à Semiologia, colocando-a como parte dessa ciência. É nesse ponto onde se estabelece uma das grandes diferenças entre Saussure e Benveniste.

Émile Benvensiste, lingüística destaque desta Segunda metade do século, não rejeita as teorias saussurianas, mas aprofunda-se dando sempre um passo à frente. É nesse ousar um pouco mais que algumas das suas conclusões mostram até alguns equívocos de Saussure. O principal deles é a questão da arbitrariedade. "A relação entre o significante e o significado não é arbitrário propõe Benveniste, mas necessário" (Cardoso, 1997:73).

O que é arbitrário para Benveniste é a relação entre o signo e o objeto. A sua preocupação é com o semântico e a partir de então, a grande novidade nas suas conclusões é a questão da referência, parte integrante da enunciação. Assim, enquanto Saussure privilegia a estrutura, Benveniste focaliza a significação.

Quando Benveniste se preocupa com o semântico em lingüística, ele abre perspectiva para que seus estudos avancem, libertando a língua do fechamento e da imobilidade com que os estruturalistas a enclausuraram. Não é sem motivo que os primeiros estudos gramaticais, como vimos no início estavam ligados á filosofia. Que linguagem e pensamento não se dissociam tão facilmente, afinal, se é a língua que torna a sociedade possível, são estados, verdadeiros feitos da linguagem.


Bibliografia
 

1. CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. "Benveniste: enunciação e referência". Revista de estudos da linguagem. N. 5 - V. 1. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1997.

2. CHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1977.

3. DOMINGUES, lvan. O grau zero do conhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

4. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

5. KRISTEVA, Júlia. História da linguagem. Trad. Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 79, 'l969.

6. LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. Trad. Rosa Virgínia Matos e Hélio Pimentel. São Paulo: Ed. Nacional; Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

7. PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

 


Raul Bopp

Leia obra poética de Raul Bopp

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Miguel Sanches Neto, 2002