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Batista de Lima

 

Às margens sinuosas das palavras
 

Do sabor do texto ao prazer da leitura: uma experiência dos sentidos
 

 

 

 

O texto tem o seu sabor. A prova disso é o leitor estar sempre a utilizar metáforas culinárias para revelar seu prazer gustativo diante da escritura. São comuns verbos como digerir, devorar, ruminar, degustar, deglutir, engolir, etc, utilizados por leitores ávidos, sedentos. Esse não é, no entanto, o objetivo primeiro dessa nossa leitura do prazer do texto. O que desejamos prioritariamente é uma análise do percurso feito pelo leitor, entre o prazer e a fruição, entre a língua e a fala, entre o real e o imaginário que podem se esvair do texto. Para tanto recorremos às idéias de Roland Barthes e de outros escritores, sobre o tema, sem no entanto deixarmos de marcar nossa opinião e experiência de leitor, sobre o assunto.

O texto precisa unir autor e leitor tão bem integrados que os dois se confundam e se tornem elemento único no contexto. Que os dois façam do texto um teto para uma co-habitação harmônica. Que os dois continuem a construção do te(x)to, pois a vida do te(x)to é sua construção. O te(x)to nunca está acabado. O que o eterniza é a sua leitura.

A leitura é uma incessante busca da outra margem do texto, ou como afirma Roland Barthes (1996:12) “uma outra imagem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem”, porque a primeira margem, como diz esse mesmo pensador é “uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correto, pela literatura, pela cultura)”.

A primeira margem do texto é dada ao leitor, a segunda ele constrói. O prazer do texto se instala entre o primeiro contato, margem, e o segundo, margem a construir-se. Quando a margem perde sua estabilidade e o leitor entra em deriva, instaura-se a fruição, no vazio, na fenda, no corte; enquanto o prazer está na cultura, na segurança da margem sólida do texto, a fruição instala-se na desconstrução do pré-estabelecido. O pré-estabelecido é codificado, é social, é língua.

A língua é palco de todos os prazeres da linguagem. É a primeira margem, é vigiada, disciplinada, e alienante. A língua é a matéria-prima com que se ergue a arquitetura textual. Já o texto é um tecido, malha labiríntica. Ora, se imaginarmos um salto do tecido ao vestuário, pode-se concluir que o lugar em que esse vestuário é mais erótico, é onde ele se abre em fendas. É a partir do genial corte, que as formas cintilam. Prova disso é o que acontece com o “Strip-tease”. O “Strip-tease” vai matando a imaginação. Ao desvelar ele desvela-se, mata a fantasia, já que o final é previsto, não tem o sabor do imprevisível.

Exemplo do imprevisível é a metáfora do dilúvio. Noé e todas as criaturas a lhe cercarem são a primeira margem. Mas a arca feminina, concha e útero e o transcorrer do dilúvio com o seu final imprevisível é a outra margem que construímos. Capitu, em “D. Casmurro”, de Machado de Assis, é arca, é ostra, é útero, é estuário, é mar onde deságua o rio Escobar; eros e tanatos. Diadorim, em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, é homem sendo jagunço, é mulher sendo fenda onde se instala Riobaldo. É vereda numa margem e é sertão indefinido na outra. Tanto “D. Casmurro”, como “Grande Sertão: Veredas” são arcas, ostras, onde o dilúvio se instala através das fendas de sua construção.

Para Roland Barthes (1996:19), há dois regimes de leitura: uma ignora os jogos de linguagem; a outra leitura não deixa passar nada. A primeira é rede de malha grande onde só os grandes peixes encalham, a outra é de malha fina onde todos os peixes encalham, os mínimos inclusive, e a flora marítima, o alimento do peixe também, enfim, onde o mar é pescado e em mim se instala, para que eu o povoe de peixes de minha criação.

A leitura é também comparada a um toque de mãos, uma troca de afetos. Quando duas mãos simplesmente se tocam, estabelecem uma margem de partida, de leitura, mas quando o afeto se instala na fenda que as duas abrem, uma só mão passa a existir, um momento epifânico se produz.

Daí não há texto pronto. “Grande Sertão: Veredas” termina com o oito deitado, ou seja, não termina, começa “D. Casmurro” termina com o começo da dúvida. Construir um texto é construir uma casa. A casa é como ostra, só tem vida enquanto habitação, enquanto construção. O morador está em constante construção, assim como o molusco, na ostra. Saindo o construtor, o corpo morre. O texto pois, só tem vida com a dinâmica da leitura, com a presença do leitor em constante construção. Segundo Barthes (1996:21):

Texto de prazer é aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição é aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta, faz as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.

Assim, o texto de fruição é de ruptura, de desbordamento, de defecção. É uma “esfoladura”, nas palavras de Barthes.

Nessa mesma perspectiva, pode-se dizer que o olho por onde vejo o texto, é o mesmo por onde o texto me vê. A porta por onde entro no texto é a mesma por onde o autor dele saiu. Mas ao entrar no texto, como leitor, levo comigo o autor, no seu retorno. Surge daí, então, logo uma primeira dúvida: como posso ter prazer em um texto de crítica que já é um exercício de prazer? Essa pergunta, Barthes responde da seguinte forma: “visto que sou aqui um leitor em segundo grau, cumpre-se deslocar minha posição: esse prazer crítico, em vez de aceitar ser o seu confidente - meio seguro de perdê-lo - posso tornar-me o seu “Voyeur”: observo clandestinamente o prazer do outro”. (1996:26)

O prazer é significante, ao ser dizível, a fruição é significado por ser indizível. O escritor de prazer e seu leitor navegam no sintagma. O que a crítica tem feito é uma prospecção no texto do prazer. Talvez a Estética da Recepção tenha, entre as teorias literárias, mais se aproximado de uma crítica da fruição, ao se voltar para o leitor e seu horizonte de expectativas. O autor, na fruição, abre a fenda, o vazio. O leitor, na fruição, preenche o vazio. O próprio Barthes afirma que os patrulhadores políticos tendem a nos fazer acreditar que todo o prazer, principalmente o do texto, é uma idéia de direita e que à esquerda, opõe-se o conhecimento, o método, o compromisso, o combate, à simples deleitação. Se, pois, o literato é mantido pela sociedade mercantil, difícil tirar-lhe o estigma da direita. Se a matéria-prima do literato é a linguagem, fica o mesmo preso à sua fonética, ao seu relevo, ao seu clima.

A esse respeito pode-se dizer que os estruturalistas procuraram o texto asséptico, pensando no isolamento de suas circunstâncias. O texto saboroso é como água de cacimba, vem com o sabor da terra, com suas vitaminas de barro, de húmus. O texto precisa de sombra, da ideologia dominante. Precisa do tempero dos fantasmas, das ventilações do ar que respiramos. O texto tem que ser esponjoso, pulmonar, para que transite pelos seus poros, o hálito do meu povo. O texto é também como um trampolim, uma catapulta, dele eu fruo, a partir dele eu alço vôo, decolo como pássaro epifânico.

Quando Barthes diz que “o escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe”, tem como referencial a língua materna. A língua materna traz a mãe em si, a cultura, o lirismo, o afeto. Daí o perigo do texto de tradução. Primeiramente porque o texto deve ser lido na língua em que foi escrito. Depois, porque o texto literário precisa ser refeito, ao ser traduzido, e nem todo tradutor consegue ser um recriador da linguagem. O mesmo não se pode dizer do texto científico, mais fácil de se adaptar à mudança de código.

A linguagem que eu falo, não é de meu tempo, é imitação. Por isso quero reverter, fruir. Mas a fruição é associal por ser transgressão de algo posto pela sociedade. A obra literária não deixa pois de ser o produto de uma desilusão. A grande literatura tem sido a busca de um paraíso perdido. Todo romance de 30, no Nordeste, é a tentativa de reconstrução de um latifúndio decadente. Os escritores eram descendentes de fazendeiros em decadência e vieram buscar a fazenda perdida ao instalar-se no te(x)to. José Lins do Rego é exemplo palpável disso. Na poesia, Drummond todo tempo busca uma Itabira semidestruída e as fazendas paternas arrasadas pelas companhias de mineração inglesas. Bandeira está em busca da saúde perdida.

Essa reconstrução, no entanto, não deixa de ter seu lado determinado: a imposição da cultura. Entre os elementos impostos pela cultura está a frase com todo o seu arcabouço estrutural elaborado anteriormente ao momento de criação de quem escreve. Os escritores se enclausuram na frase. Somos vassalos da frase. Dependemos dela. Ela admite o prazer, mas inibe a fruição. A frase é um império poderoso, fechado, ou como diz Barthes (1996:66) a frase “implica sujeições, subordinações, recções internas. Daí o seu acabamento: como poderia uma hierarquia permanecer aberta? A frase é acabada”. Como toda estrutura acabada, a frase é ideológica, alienante, até. O professor é alguém que acaba suas frases, o político também. O escritor é quem tem a coragem de suspender a frase para que o leitor a complete. Só suspendendo a frase consegue a fruição. É preciso saltar do barco/frase em plena correnteza para que o rio/texto se instaure no meu mergulho/nado.

Precauções são necessárias, no entanto, da parte do criador do texto. Uma delas é contra o patrulhamento político, para quem o prazer do texto é fútil. A outra é contra o patrulhamento psicanalítico que alega certa culpabilidade intrínseca em quem se dedica a esse tipo de texto. Ora, se há patrulhamento com relação ao prazer do texto, pior quando se trata da fruição. Não se tem dúvidas de que os surrealistas sempre foram vítimas desse policiamento pois tiveram sempre mais liberdade de derivar do prazer à fruição. Para essas patrulhas, não funciona o prazer, e sim o desejo. Para eles, segundo Barthes: (1996:74) “o desejo teria uma dignidade epistêmica”.

Exemplo da prática do desejo textual são os livros eróticos, onde se apresenta muito mais a expectativa do que a própria cena erótica. Ao chegar à cena, há a deflação, a decepção. Pode-se a partir daí se pensar numa estética do prazer que trabalha a ânsia do consumidor, tomando como ponto de partida o horizonte de suas expectativas. Seria uma estética do insaciável.

Voltando, no entanto, à relação autor x leitor, pode-se dizer que entre os dois há um cordão umbilical que se chama leitura. A leitura é uma coreografia da respiração de quem escreve com quem lê. Quanto mais a respiração do texto se adequa à respiração do leitor, mais o prazer é possível. Mas, e o prazer da fala? Não é do texto. A fruição é uma fala, ou da fala. A fruição é uma espécie de prazer da fala. Não se deve esquecer que a individualidade se instala na fala, assim é que conclui Barthes: (1996:82),

 

o fetichismo concordaria com o texto cortado, com a fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metolinguagens (lingüístas, semióticos, filólogos). O paranóico consumiria ou produziria textos retorcidos. O histérico seria aquele que se joga através do texto.

 

A fala é o estilo, o charme, é o modo que encontra o escritor de se esculpir. E entre as funções da linguagem, é na poética, onde ele mais trabalha sua fala.

Quando Jakobson (1977:128) trata dessa função, ele mostra exemplos em que o som, as aliterações e as onomatopéias concretizam na expressão, aquilo a que se referem. Célebre é seu exemplo com a frase: “Tenho horror de ti horrendo Henrique” onde a presença constante do “H” e do “R” levam o horror a se instalar na expressão. Apontamos aqui uma passagem do compositor Chico Buarque de Holanda, onde fenômeno semelhante ocorre: “Toda gente homenageia Januária na janela/ até o mar faz maré cheia p'ra chegar mais perto dela”. O som da onda se espraiando na areia, está se aninhando na composição desse genial artista.

É preciso ser leitor ativo para captar todas essas nuances da fala que do texto se esvai. Mas não se pode pensar apenas no leitor do texto escrito. Há a leitura de outros contextos que existiam antes da escrita e persistem com ela.

Com relação ao livro, tanto o escritor nele se coloca que instaura o sopro da vida no seu interior. Não foi sem razão que Wolt Whitman certa vez escreveu:
 

“Camarada, isto não é um livro

Quem toca nisto, toca em um homem,

(É noite? Estamos sozinhos?)Sou eu que seguras, e que te segura,

Eu salto das páginas para teus braços”

(1975: “Song of myself”)
 

Para esse grande poeta americano, o livro é da carne e do sangue do escritor e o mundo é um livro a ser decifrado. Pensar o livro como corpo vivo é um caminho para se instaurar a metáfora do prazer gustativo diante da leitura. Daí expressões corriqueiras como: degustar um texto, cozinhar uma história, apimentar os ingredientes do enredo, ter idéias cruas, injetar pitadas de ironia, pôr molhor, referir-se a uma fatia da vida, saborear um texto, devorar um poema, ruminar uma idéia, banquetear-se de poesia, mastigar as palavras, fazer uma dieta de determinados textos, beber a sabedoria dos outros, engolir palavras etc.

Assim como nunca atravessamos o mesmo rio, também nunca lemos o mesmo texto. No transcurso que fazemos ao transitar por um texto o que vale é a nossa liberdade no transporte dos desejos. Afinal, o texto jaz e nós leitores o ressuscitamos através da leitura, esse vício impune, por não caber em leis. O homem não resiste à solidão, lê porque está só. Mas antes de ler, o homem precisa escrever. Não há leitura se, antecedendo a ela, não houver uma escrita. Não se pode ter pois boa leitura se não houver boa escritura. Ora, se ler é nutrir-se, respirar pelo pulmão do texto, é criar asas, ensinar a ler é ensinar a respirar, é ensinar a voar. Ensinar uma criança a ler, é dar-lhe asas para o vôo de que sempre utilizaremos ao longo da vida, para voarmos alto, muito acima da nossa solidão.

 

 Poeta e professor da Unifor

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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José Saramago, Nobel