Batista de Lima
A musa e o rastreador
O rastreador chama-se Rodrigo, a
musa é Marta. Os dois se desacham. Mas se ela soubesse que
esse é "O livro de Marta", não precisava de tantos bilhetes
de amor quebrado. Ainda bem que ela não sabe, porque se
soubesse quebraria o encantamento e o livro estaria
destruído. O rastreador é Rodrigo Marques, a musa é apenas
Marta, sem sobrenome para que a identificação fique mais
difícil. Marta é pura obsessão ao longo de trinta estações
dessa via sacra em seu encalço. Onde andará essa flor desse
amor obcecado?
Primeiro é preciso conhecer esse
rastreador. Rodrigo Marques veio ao mundo em Fortaleza na
safra de 1980. Desde quando procura por Marta não se sabe. O
que é sabido é que fez mestrado em literatura na UFC e hoje
é professor da UECE. Sabe-se também que possui outro livro
publicado anteriormente a esse, no caso, "Fazendinha", de
2005. Desta feita ele foi econômico nas páginas (50 apenas),
mas foi vasto na poética. É tanto que dois bons conhecedores
da arte literária estão com ele nesse livro com seus
comentários favoráveis a essa busca por Marta.
Primeiro aparece Ruy Vasconcelos,
tentando desvendar a persona que Rodrigo põe na sua
dianteira e que todos corremos atrás como aqueles cães que
correm para alcançar o osso em corridas de campeonato. Não
alcançamos Marta mas conseguimos, exauridos, chegar ao fim
da corrida, digo, da leitura. Isso porque Rodrigo vai
criando obstáculos metafóricos, parece que com o intuito de
que não alcancemos Marta, afinal nem ele alcançou e continua
correndo atrás. Esse é o destino dos poetas. Eles criam suas
musas, se despedaçam por elas e ainda levam seus leitores a
reboque. Ruy Vasconcelos no seu texto orelhudo lembra que a
dissertação de mestrado de Rodrigo foi uma devassa na obra
de José Albano. Albano é outro inveterado por musas, viveu e
morreu nos braços de quimeras.
Esse livro de Rodrigo Marques
poderia perfeitamente ser chamado de "Livro do desachamento".
Pois todo mundo desacha Marta. Até Carlos Carvalho, no
prefácio, fica a perguntar: "Mas afinal, quem é Marta? Uma
passista de carnaval, um quadrúpede ou a mulher que bebe no
bar ao lado do salão mais caro, enquanto a cada um de seus
goles o chão afunda mais um pouco?" Mesmo sendo o livro de
Marta nem o autor consegue encontrá-la no seu rastreamento.
Tudo em torno dela é incógnita, é abismo, insulto e desejo.
O livro possui, pois, uma dinâmica de busca constante de uma
musa que ludibria aqueles que a seguem. Esse jogo instiga o
leitor a continuar nesse mutirão de procura mesmo terminado
o livro.
Esse é o destino dos bons livros,
nunca terminam. Ai do livro que se termina. Esse livro de
Rodrigo Marques apenas começa. Logo no primeiro poema ele já
confessa suas dificuldades de captar as vozes de Marta. "Não
sei ao certo as vozes, por nascerem do lado de fora". O que
ele prospecta está bem além do nível fonológico da
manifestação da musa. Sua escavação é uma busca muito além
da superfície. Quando escreve "à mão e de azul", ele cria
uma cumplicidade com a escrita e ao mesmo tempo enceta
jornada pelo infinito simbolizado pelo azul da procura.
Essa viagem empreendida pelo poeta
se realiza sobre várias formas poéticas, inclusive, tendo
como montaria, em alguns momentos, ajaezados sonetos. É o
caso, por exemplo, de "Soneto do ódio mortal", em que ele
desfecha: "O amor tem dessas coisas / Quando não vai, manda
seu verso". Já no soneto seguinte, contradizendo modos
anteriores de busca, há a afirmação: "Os olhos me bastam",
ou o que aparece no terceiro e último soneto: "vejo-te aí
contendo a fruta". Essa contradição com o comportamento
geral do livro é uma forma de ser coerente com o lado formal
que possui cada soneto.
A sua luta entre pele e abismo, como
forma de encontrar o melhor aconchego para Marta, faz com
que até o mar seja transplantado para seu quarto.
Entretanto, "o mar que dorme no quarto (…) não vale a pena
(…) é um mar sem abismo". Até os copos são carentes de
abismos, por isso que vem o desabafo: "pouco me dizem os
deuses e os rótulos / se me precipito nos copos". Até o
banho tem sua feição cáustica, "o banho me escorre pelo
ralo". Essas metáforas de água que estão presentes
constantemente nos seus poemas é uma "chuva entre os dedos /
a escorrer asfalto".
No final do livro, há quatro dos
poemas traduzidos para o espanhol por Sílvia Lopes. O que
aparentemente é desnecessário, por outro lado pode-se
interpretar como uma provocação a Marta. Por que não é Marta
a tradutora? A distância de Marta pode provocar a
aproximação de Sílvia. Afinal, poema não se traduz, poema se
refaz. É o que acontece nesse caso.
Esse acontecer contribui para se
concluir que em Rodrigo Marques, tudo conspira para uma boa
feição de sua poética. Seu livro é agradável de ler porque é
agradável acompanhá-lo na busca por Marta. Marta não deve
ser encontrada, deve fazer falta, deve manter a importância
da falta que a falta faz. Portanto, se o autor ou o leitor
chegar a encontrar essa desachada Marta, que desache mais
uma fez. O sonho de encontrá-la não pode se tornar
realidade. Como leitor, gostaria muito de encontrar Marta,
simplesmente para depois de encontrada, escondê-la muito
mais bem escondida. Afinal o que é a vida se não uma
permanente procura?
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