Beatriz Alcântara
Iracema: a virgem dos lábios de
mel
O mel dos lábios de Iracema é
como o favo que a abelha fabrica no tronco da guabiroba: tem na
doçura o veneno. A virgem dos olhos azuis e dos cabelos de sol
guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel de açucena.
(palavras de Iracema ao amado Martim, nos campos da nação dos
Tabajaras - capítulo VIII)
Câmara Cascudo, um nordestino sempre reverenciado pela expressão
aguda de sentir os fenômenos culturais da região, referiu-se deste
modo ao comentar a identificação nacional com a obra e os
personagens de Alencar: ´... muito dessa irresistível atração foi o
vocabulário de Alencar, o brilho, a musicalidade verbal. A imagem
inebriante e soberba para o seu tempo, as graças capitosas da
minúcia, da precisão, da habilidade idiomática e mesmo sua sintaxe,
as concessões ao sabor local, os neologismos, brasileirismos, enfim
a liberdade ousada, aberta, corajosa, ostensiva, em empregar uma
técnica que era eminentemente sua e que apaixonou o Brasil inteiro´.
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas
frondes da carnaúba:
Verdes mares que brilhais como liquida esmeralda aos raios do sol
nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros:
Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o
barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
(parágrafo inicial do romance Iracema, que por revestir-se de
imagens densamente líricas, Machado de Assis denominou-o de poema em
prosa que no futuro, por certo, seria reconhecido como obra-prima)
A escrita normativa lusa adquiriu uma renovada feição pelo falar e
sentir de uma nova gente, o povo brasileiro, que na lenda de
Iracema, iniciava-se na miscigenação da índia de cabelos mais negros
que a asa da graúna com o guerreiro branco que acedeu, por puro
encanto aos filhos da terra a se tatuar Coatiabo - primeiro, pela
virgem tabajara Iracema e, depois, pelo amigo guerreiro pityguara
Poty.
A passagem que se segue claramente transparece o objetivo do Autor
no registro da cúmplice integração:
Foi costume da raça, filha de Tupã, que o guerreiro trouxesse no
corpo as cores de sua nação. Traçavam em princípio negras riscas
sobre o corpo, à semelhança do pelo do coaty...
O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, devia
passar por aquela cerimônia, para tornar-se um guerreiro vermelho,
filho de Tupã.
Poty se proveu dos objetos necessários...Iracema preparou as tintas.
O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo os riscos
vermelhos e pretos, que ornavam a grande nação pityguara. Depois
pintou na fronte uma flecha...no braço um gavião...no pé esquerdo a
raiz do coqueiro...no pé direito pintou uma asa...Iracema tomou a
rama da pena e pintou uma folha com uma abelha...assim como a abelha
fabrica mel no coração negro do jacarandá, a doçura está no peito do
mais valente guerreiro
...meu irmão é um grande guerreiro da nação pityguara; ele precisa
de um nome na língua de sua nação
...Coatiabo! exclamou Iracema.
Tu disseste; eu sou o guerreiro pintado...
A filha de Araken foi buscar à cabana as iguarias do festim e os
vinhos de jenipapo e mandioca. (Cap. XXIV)
Martim, o guerreiro branco que se deixou pintar por todo o corpo,
Coatiabo, foi, pela mão do romancista cearense, integrando-se e
rendendo-se, por inteiro, aos hábitos, ritos, costumes e mesmo à
lírica expressão verbal indígena.
O romancista pretendeu evidenciar, por meio de uma narrativa
vigorosa e idílica, com nativos e conquistadores brancos se
revestindo sempre de gestos nobres e heróicos - um aspecto raramente
encontrável na colonização de novas terras - o desejo do guerreiro
de tez branca de não ser o outro, o estranho, e sim um outro, outro
que tal os outros nativos.
Quando Martim quis se despedir de Iracema que o seguia com
insistência, no caminho de volta, saindo da aldeia dos Tabajaras,
assim se expressou:
Mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa a arrancá-la. Cada
passo de Iracema no caminho da partida, é uma raiz que lança no
coração de seu hóspede. (cap. XVI)
Ao estrangeiro, nada soava estranho na civilização dessas nações
indígenas de práticas coletivas - o plantio, a colheita e o preparo
do milho, da mandioca e do algodão, atividades exclusivamente das
mulheres; a caça, a pesca e os sonhos da Jurema só aos homens
permitidos.
Por todos os modos, o guerreiro branco se queria reconhecer como um
da terra. Martim participava e se rendia ao bom uso da inteligência
emocional indígena, como por exemplo, a fruição da hospitalidade do
pagé Araken, pai de Iracema, na grande taba guerreira inimiga:
No meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, estendeu
Iracema a esteira de carnaúba, e sobre ela serviu os restos da caça,
e a provisão de vinhos (de caju e ananás) da última lua. O pagé
bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupã, que lhe enchi as arcas do
peito; o estrangeiro respirava ar às golfadas para refrescar-lhe o
sangue efervescente; a virgem destilava sua alma como o mel de um
favo (cap.XII)
A rede é, por certo, a maior herança emocional brasileira advinda
das nações indígenas.
No colo da rede, todos pensamentos se permitem ter origem, se
aninham, se transmutam e se renovam. O mancebo branco a ela também
se rendeu:
Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua
vontade oscila de um a outro pensamento(cap.XV).
Alencar transpôs para a ficção lendária de Iracema a permanência e o
uso do mais maleável recipiente do corpo humano: a rede. Ela permeia
o terreno da ternura onde a dor e o sofrimento se refazem pelo
aconchego em repouso.
A noite, senhora do mistério escuro, na cama indigena origina o
entendimento do amor e a ilusão do sonho enquanto promove o descanso
para ao novo dia entregar a alma ao corpo, por todo modo reparada.
A rede, universo do refúgio, está intimamente ligada à simbologia
feminina da taça - gravidez e nascimento - afeita que também se acha
à imagem de acolhimento e gestação do novo.
Que mais poderia estar integrado ao universo onírico do repouso no
imaginário humano, do que este berço ancestral dos índios?
A alva rede que Iracema perfumara com a resina de beijoim
guardava-lhe um sono calmo e doce. O cristão adormeceu ouvindo
suspirar, entre os murmúrios da floresta.(cap.IV)
José de Alencar jamais caiu no antagonismo: bons índios contra maus
brancos; nem bons brancos contra maus índios; menos ainda a
civilização contra o barbarismo. O enfoque sempre foi, desde os
primórdios, o do nascimento de uma pátria, e esse ponto de vista
sempre se manteve mesmo quando dos embates bélicos, apresentados por
ele como uma necessidade para a demarcação, estrutura, construção e
fortalecimento de uma nova nação nos trópicos.
Iracema: lenda do Ceará é obra inexaurível, fértil como a terra e o
imaginário do Brasil.
Cearensidade é uma designação que vem ganhando espaço e uso,
notadamente em certos meios culturais, nesta década de início do
terceiro milênio. Este termo teria por intento a identificação de
conceitos peculiares ao Ceará.
O escritor José Martiniano de Alencar com seu romance indianista
Iracema: lenda do Ceará oportunizou o testemunho do nascedouro do
povo cearense, o registro da topografia, da fauna e da flora da
região, como também nos apresentou os alimentos, os usos e os
costumes nativos ancestrais.
Muitos e notáveis escritores cearenses louvaram com arte,
conhecimento e sensibilidade a sua terra natal, porém poucos
conseguiram expandir e notabilizar o registro da cearensidade como
Alencar e sua mais notável obra, o romance Iracema: lenda do Ceará.
Leia José de Alencar
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