Beatriz Amaral
Nômada, mosaico móbile: o locus
poético de Rodrigo Garcia Lopes
"A consciência sulca
e eterniza o fugaz
no grão da linguagem"
(Nascimento da Poesia,
Nômada, p.41)
Linguagem, espaço, movimento: um fio de luz que se desloca e filtra,
na poeira dos dias, fagulhas de cidades, centelhas de deserto, dores
alcalinas, na amplitude de um mosaico em que nada parece faltar ou
sobrar. Justo, límpido, depurado, o texto de Nômada (ed. Lamparina,
2004) é indício claro da maturidade poética de seu autor, Rodrigo
Garcia Lopes, um dos mais criativos, sensíveis e expressivos nomes
do atual panorama literário brasileiro, que já há dez anos (desde a
estréia, com Solarium, Iluminuras, 1994), vem construindo uma obra
marcada pelo trinômio inventividade / rigor / leveza, merecendo
especial leitura e atenção.
Deslocamento de vozes, trânsito de sentidos: eis a chave para a
melhor compreensão deste novo livro de Garcia Lopes. Em constante
transmigração, a palavra poética de Nômada move-se em uma "galeria
de enigmas" e penetra na "história simultânea das coisas" (p.54),
alimentando o futuro das teias, das tribos, das esquinas,
desvendando, nos retalhos da memória, música, saliva, clarões,
fragmentos de uma porta secreta (p.30), o outro tempo, o outro nome
do agora, ou, como diz o poeta:
" ...... um passado que se desdobra
sobre esta polpa de presente .........".
(p.13)
02.
Onde e quando nasce a poesia de Nômada? O próprio autor busca
retratar este momento, em Nascimento da poesia (p. 41), lembrando
que "um dia a voz / efêmera / é escrita na areia // e nasce a linha
/ retorno / virada". Um gosto, incidência de luz, areias na retina,
plasma, plâncton, novas formas e aromas "ficando quase como um
incenso fica" (p.40). Tactilidade e movimento, índices de concreção,
de inserção do poema nos estilhaços do real ou do hiper-real, como
ave-palavra em vôo de milênios, no avesso descontínuo de um
"labirinto original" (p. 81).
Rodrigo Garcia Lopes ilumina frestas de prototempo, ao construir seu
"universo plano de pétalas" (p. 57). Arvoredos, dunas, oásis,
centelhas, tudo é sempre "puro movimento" (p. 60), como o "desenho
desperto", como "um uivo, algum destino de laguna difusa" (p. 61).
Num dos primeiros poemas do livro, denominado "Pensagem" (p.14), diz
o poeta: "Têmporas do vazio, / acolham o resto / de gravidez dos
segundos. // Unha e carne / Céu e árvore / O vento arme. // Cada
gesto / de seda decifre / o Hades da ira.....".
A cada página de Nômada, o ritmo do olho vai fraturando as
paisagens, os destinos, os continentes e ilhas para onde
"Levamos mapas que modificam e se estendem a cada passo sobre a
língua"
(p. 57)
Valorizando o infinito de cada signo, o texto é pródigo em explorar
assonâncias e aliterações, como no poema Rito (p.15): "ou quando
olhar era uma reza / pensar que revelava a leveza, / Música vindo de
dentro / (Precisa de centro?)". Mas a poesia de Nômada também erige
caleidoscópios polissêmicos, tece redes semânticas e ilumina cada
móbile grão de areia, enquanto frações de luz se multiplicam, aqui e
ali. São clarões, relâmpagos, abajures, penumbras, lamparinas,
tochas, piras, dínamo que impulsiona o nomadismo das cenas, os
recortes da fala, os mistérios do ser. Da herança concreta e da
música leminskiana à múltipla experiência do tradutor e também
ensaísta Rodrigo Garcia Lopes, surge esta palavra densa que vê as
sombras, contempla o ponto zero de nosso tempo, e se move para
iluminá-lo, na zona delicada do fazer poético. Como mestre, o autor
conhece o ponto de fusão e as "transições sutis" do tempo e das
cores, o "céu ancestral.
03.
crisálida partida, la dolce ferida, o vento no varal,
coisas-centelhas, como antes de conhecê-las". A poesia se transmuta,
fogo num espaço disperso. Antes, "o horizonte nublado dublava a
curva de sua rotação. Hoje, tudo sucede por fluxo de acumulação".
(p.130, cityscape).
Resíduos sedimentam o devir, e a palavra viaja, no mapa dos lugares,
gaivota entre pausas, entre dois pontos, "mawqif, ir ou ficar" (p.
154). O poeta vislumbra "um corte na luz, a esquina da mesquita se
desmancha, e o tempo se duplica". Amálgama de figuras e contrastes,
Nômada é palavra iluminada pela letra primordial (p. 163).
Conforme assinala Octavio Paz (1), "quando percebemos um objeto
qualquer, este se nos apresenta como uma pluralidade de qualidades,
sensações e significados. Essa pluralidade se unifica
instantaneamente no momento da percepção. O elemento unificador de
todo esse conjunto de qualidades e formas é o sentido".
Em Nômada, o olhar poético viandante, entre o real e o onírico,
confere sentido ao universo por meio da própria errância. Deslocar é
descolar, e a palavra articula o grande mosaico da linguagem. A
cifra do mundo na vivência do poeta, as alteridades traduzindo
espelhos, uma voz móbile, o mosaico - tatuagem na própria pele.
Como frisa Benedito Nunes (2) , "os primeiros pensadores, como
Heráclito e Parmênides, ainda eram poetas. Enquanto vislumbraram o
ser como logos e alétheia, em sua união coligente com o tempo, o seu
pensar foi um dichtende Denken, um pensamento poético, que a
Filosofia absorveu. Ora, essa proximidade do ser já uma vez pensada
e ainda a pensar - a 'grandeza da origem e a possibilidade de seu
recomeço - é a região de retorno para onde a viragem aponta e de
onde ela desponta"
A palavra poética de Rodrigo Garcia Lopes reencontra seu kosmos de
luz e pó, transitando corajosamente por ritos e labirintos, e pelos
acontecimentos mais graves de nossa história recente, colhendo os
resíduos de um "setembro negro" (p. 32), vislumbrando fábulas entre
as fagulhas da guerra, pelo tempo sombrio do nada.
04.
Nenhuma sílaba separa a poesia do tempo: frases de um massacre se
articulam para a recomposição de um princípio. Olhos fotografam a
realidade, enquanto minúcias ganham contornos de grandeza: migram
formigas no plano da página aberta. O poeta produz "6 Movimentos de
Câmera : travelling, close, plano americano, contrapongée, plano
fixo e zoom" (p. 70-71)
No primeiro deles, "travelling", desponta o filme dos sentidos e o
poeta dispara:
Os jardins do olho se propelem
à velocidade do tempo ele confere
o além de sua própria pele
entre tatuagens de fome. ..
(p. 71)
Em seguida, faz-se o "close", e
Num segundo a flor se fecha
como dedos
no vazio de seu segredo
(p. 71)
E a câmera se afasta, para, depois, "a um passo do passado",
retornar ao ocaso, e focalizar o mínimo, as coisas que ainda
existem, as que persistem, miúdas e insignificantes. Delas
transborda uma nova ótica. "O que se move é o percebido" (p. 71),
enquanto "o mundo é um vácuo que se afasta" (p. 76).
As cinco partes do livro, Mônadas, Fragmentos em movimento, Viagens
à hiper-realidade, Liberdade de pó: um diário e Nômada criam
meandros por onde o poeta desvela muitos anseios do homem
contemporâneo: crença e busca, pensamento e dúvida. E, na expressão
da delicada metalinguagem de todos os recomeços:
Quem há de indicar exatamente
O texto nesses rios subcutâneos?
(p. 99)
05.
Neste seu Mar de Vigo, a poesia de Garcia Lopes sabe:
O real não está nas coisas.
Nas coisas só existe a mente
insaciável, analógica, ciosa:
o que lhe interessa é o entre.
(A arte do intervalo, p. 100)
A consciência sulca o fugaz, os instantes díspares forjam o uno e,
como diz o poeta,
"A medida de uma imagem a se dissolver é calculada por
infinitesimais relatos dispersos como nebulosas. As coisas, exatas,
se desviam de nossos conceitos, criam suas arestas, galáxias, oásis,
e brilham em sua mais perfeita conjunção" (p. 57)
Na câmara de vozes, ecoam palavras como senhas, como luzes, vetores
de um consistente projeto poético:
.......cada fragmento guarda a mônada de sua configuração em si, e,
o que é mais claro, nunca pára.
.......Mesmo de fibra de vidro, pixel, ainda digo. Meu comboio
dispara rumo às colinas da Idéia, e suas pausas de aço cospem
centelhas de sentido. (p. 144).
(1) PAZ, Octavio. O ARCO E A LIRA, Nova Fronteira, São Paulo, 1982,
p.131
(2) NUNES, Benedito. PASSAGEM PARA O POÉTICO, São Paulo, Ática,
1986, p. 277
Beatriz Amaral, poeta, escritora, mestranda em
Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é autora de Planagem,
Primeira Lua e Alquimia dos Círculos, entre outros títulos.
Site
pessoal:
http://beatrizhramaral.sites.uol.com.br/
Leia a obra de Rodrigo Garcia Lopes
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