Vivian Steinberg
Poesia feita do material mais
concreto
Sophia de Mello Breyner ganha
antologia
30.10.2004
Poemas
escolhidos
Sophia de Mello Breyner Andresen
Seleção de Vilma Arêas
Companhia das Letras
288 páginas
R$ 39
Sophia de Mello
Breyner Andresen garimpa no burburinho do dia-a-dia o momento
solene. Como ela mesma diz, ''o poeta é um escutador'' e o leitor
também, é preciso escapar do tempo e penetrar no silêncio. Antes de
saber ler, a porta portuguesa já ouvia versos, e, aos 3 anos, sabia
de cor a Nau Catarineta. Ela conta que se surpreendeu quando soube
que tinham sido escritos e havia autores por trás dos poemas. ''Eu
era de fato tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por
pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram
a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio'',
revelou.
Agora, com uma
seleção precisa de Vilma Arêas, o público brasileiro tem acesso aos
versos de Sophia de Mello Breyner Andresen. Poemas escolhidos é uma
antologia que percorre desde o primeiro livro, Poesia, de 1944, até
Ilhas, de 1989. Depois de editar essas obras, Sophia ainda escreveu
Musa, de 1994, e O búzio de cós e outros poemas, de 1997, além da
peça de teatro O colar, de 2001.
Em Portugal, a
editora Caminho está relançando toda sua obra, título por título,
incluindo alguns poemas que, ao longo das edições, foram suprimidos.
O único título que não foi editado nas Obras poéticas é O Cristo
cigano, de 1961, história contada a ela por João Cabral de Melo
Neto, em Sevilha.
Além de poesias,
Sophia publicou contos para crianças, dois livros de prosa, traduziu
e escreveu ensaios. No Brasil, Maria Bethânia, no espetáculo
Maricotinha ao vivo, declamou um poema de Sophia: ''Apesar das
ruínas e da morte/ Onde sempre acabou cada ilusão/ A força dos meus
sonhos é tão forte/ Que de tudo renasce a exaltação/ E nunca as
minhas mãos estão vazias.''
Quanto a sua
criação poética, é própria a poeta quem melhor discorre sobre ela,
aponta-nos Vilma Arêas, no prefácio da edição brasileira, através
das inúmeras ''Artes Poéticas'' espalhadas pelos livros, e dos
poemas que tematizam ou comentam o ofício, como ''No poema'', do
''Livro sexto'': ''Transferir o quadro o muro a brisa/ A flor o copo
o brilho da madeira/ E a fria e virgem liquidez da água/ Para o
mundo do poema limpo e rigoroso.''
Segundo Vilma,
Sophia compartilha com João Cabral o rigor dos versos, a secura da
composição. O próprio João Cabral de Melo Neto disse-lhe, em
Sevilha: ''Gosto muito da sua poesia: tem muito substantivo
concreto.'' E Sophia de certa forma responde, em ''Arte Poética
II'': ''O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à
qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz 'obscuro',
'amplo', 'barco', 'pedra' é porque estas palavras nomeiam a sua
visão de mundo, a sua ligação com as coisas.(...).E é da obstinação
sem tréguas que a poesia exige, que nasce o 'obstinado rigor' do
poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque
os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O
equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre
si.'' Por esse rigor muitos compreendem sua arte como apolínea,
pensando na relação entre Dionísio e Apolo, tratada por Nietzsche em
O nascimento da tragédia. Sophia acredita que a poesia perde toda a
força se tiver uma palavra desnecessária. Num poema, escreve:
''Pinças assépticas/ Colocam a palavra-coisa/ Na linha do papel/ Na
prateleira das bibliotecas.''
Sua obra é
composta de poemas aparentemente simples, mas que compreendem uma
precisão e um rigor que exigem do leitor profunda atenção. ''Imóvel
muda atenta como antena'', assim ela sintetiza: ''Poema de geometria
e de silêncio/ Ângulos agudos e lisos/ Entre duas linhas vive o
branco.''
Sophia morreu
recentemente, aos 84 anos, em 2 de julho de 2004. Em sua homenagem,
cito trechos de um belíssimo poema de sua autoria, que se refere à
morte: ''O poema me levará no tempo/ Quando eu já não for eu/ E
passarei sozinha/ Entre as mãos de quem lê// O poema alguém o dirá/
Às searas// Sua passagem se confundirá/ Com o rumor do mar com o
passar do vento// O poema habitará/ O espaço mais concreto e mais
atento// ...// Mesmo que eu morra o poema encontrará/ Uma praia onde
quebrar as suas ondas// E entre quatro paredes densas/ De funda e
devorada solidão/ Alguém seu próprio ser confundirá/ Com o poema no
tempo.''
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