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Alexei Bueno




Verdadeiro reencontro com a história da poesia brasileira no século XX


Rio, 12 de Julho de 2003

 


Só a noite é que amanhece, de Alphonsus de Guimaraens Filho. Editora Record, 672 páginas. R$ 60

 

O lançamento das poesias reunidas de Alphonsus de Guimaraens Filho, “Só a noite é que amanhece”, propicia ao leitor um verdadeiro reencontro com a história da poesia brasileira no século XX, através de mais de 20 livros e de seis décadas de atividade de um dos seus principais protagonistas. De “Lume de estrelas” (1940) até “O tecelão do assombro” (2000) delineia-se uma das trajetórias mais longas e coerentes do lirismo brasileiro.

Coerência se traduz por sucessão de rupturas

 

Tal coerência não se traduz por continuidade, muito pelo contrário, mas por uma sucessão de rupturas comandadas por uma unidade essencial intocada, como ocorreu também com não poucos dos nossos grandes poetas modernos. Se um Manuel Bandeira e uma Cecília Meireles, por exemplo, saíram de um estilo entre o simbolismo e o neoparnasianismo para chegarem até a sua fase modernista, o primeiro Alphonsus de Guimaraens Filho aparece como um poeta de sopro vasto e forte índole romântica, um romantismo noturno entre São João da Cruz e Novalis, com certa proximidade do Augusto Frederico Schmidt de então e do Vinicius de Moraes de “Caminho para a distância”. Filho de um dos poetas mais perfeitos da língua e um dos nossos dois grandes simbolistas, o que é sempre um peso biográfico, o único traço de simbolismo em “Lume de estrelas” se encontra no estranho soneto de 15 sílabas “Hospital”. Dois dos livros que se seguirão, por outro lado, “O unigênito” e “O irmão”, são de poesia quase militantemente católica, como a fizeram entre nós Jorge de Lima e Murilo Mendes, ou Péguy e Claudel na França. Um dos traços mais definidores de Alphonsus de Guimaraens Filho, entretanto, o do sonetista, dos maiores da poesia brasileira, explicita-se em seu segundo livro, “Sonetos da ausência”, confirmando-se, em 1953, em “Uma rosa sobre o mármore”, belíssimo preito a seu pai, e em “Sonetos com dedicatória”, uma série de homenagens a outros poetas, mortos ou vivos, amigos ou não, entre os quais encontramos vários retratos estético-psicológicos perfeitos, num gênero que teve a sua origem na Renascença e do qual o último Jorge Luís Borges nos deixou exemplares inesquecíveis.

A partir de “Aqui a poesia”, Alphonsus de Guimaraens Filho chega à sua plena maturidade, no sentido de depuração individual e domínio pleno do instrumento, no caso as três vertentes formais dominantes da poesia brasileira do século passado, ou seja, o verso livre, a forma fixa e a forma derivada do romance viejo espanhol, tão utilizado, nos mais diversos registros, por poetas como Bandeira, Cecília Meireles, Vinicius ou João Cabral de Melo Neto. A partir desse estágio, mais ou menos nos anos de 1950, Alphonsus de Guimaraens Filho lançará mão ad libitum desses três processos, com igual mestria e, em relação ao terceiro, o leitor avisado perceberá a grande ligação do poeta com a lírica espanhola. Parte da riqueza da sua obra, na verdade, vem de alguns aparentes paradoxos. Poeta mineiro e da paisagem mineira, é um dos nossos grandes poetas do mar, desde a “Elegia de Guarapari” até “Cemitério de pescadores”. Sendo um dos nossos poetas mais sensíveis à efemeridade do tempo e à onipresença da morte — como vemos em obras-primas como “Soneto premonitório”, de “O habitante do dia”, ou “Canção”, de “O tecelão do assombro”, digna de Fernando Pessoa — é por outro lado dos mais ligados à extrema modernidade, representada metonimicamente pelo seu livro “Ao Oeste chegamos”, contemporâneo do surgimento de Brasília, ou por alguns admiráveis poemas sobre a conquista espacial. Poeta de severa índole elegíaca, que perpassa toda a sua obra, como vemos da trágica “Elegia do irmão”, em memória de João Alphonsus, até um poema como “João Guimarães Rosa: assim tê-lo”, inesquecível retrato do nosso genial escritor, é igualmente um lírico ímpar dos momentos íntimos, familiares, da presença autoral da infância, assim como um notável poeta da amizade.

Temática da velhice inspira obras-primas

 

Nesta obra muito rica insinua-se, a partir de certa época, como seria natural, a temática da velhice, especialmente no grande livro que é “O tecelão do assombro”, no qual ela inspira obras-primas como “Segundo soneto dos oitenta anos”, “Impasse” ou “Soneto aflito”, assim como a presença do tempo que a outorga reaparece no admirável “Reses”. A angústia do que resta a dizer, por sua vez, é dolorosamente sintetizada no dístico final do “Soneto das palavras”: “Como ainda aflige aquilo que eu não disse, / como se fosse um sol que só eu visse...”. Mas se algum poema nos parece exemplar dessa mais recente poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho é o belíssimo “Cruz e Sousa e Alphonsus”, extraído do fait divers do encontro carioca dos dois poetas geniais e injustiçados em vida, poema que se banha numa sobre-humana luz de amor à poesia que sintetiza a própria trajetória do seu autor. “Só a noite é que amanhece” é um grande repositório de poesia e vida brasileiras, onde são numerosas as obras-primas, essa expressão cujo uso exige uma alta responsabilidade.
 



Alphonsus Guimaraens Filho
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