Alexei Bueno
O mar único de Sophia, visual e
musical
13.10.2004
Poemas
escolhidos, de Sophia de Mello Breyner
Andresen. Seleção de Vilma Arêas. Editora Companhia das Letras, 288
páginas. R$ 39
Sophia de Mello
Breyner Andresen, ou simplesmente Sophia, como era universalmente
referida em Portugal, fazia parte, quando de seu muito recente
falecimento, de uma espécie de grupo canônico, indiscutido,
clássico, dos grandes poetas portugueses vivos, em companhia de
Herberto Helder, de Eugénio de Andrade, de António Ramos Rosa, de
Mário Cesariny, talvez de muitos poucos outros. Mais velha deles
todos, era ainda o grande nome feminino da poesia portuguesa
contemporânea. Sua obra, relativamente curta, distingue-se
fortemente da de todos os poetas citados, com a exceção talvez da de
Eugénio de Andrade, com quem mantinha similitudes. De fato, sua
poesia, essencialmente dominada pelo poema curto, em nada se
aproxima dos grandes ciclos poemáticos de seu amigo Herberto Helder,
nem da pletora quase grafômana de António Ramos Rosa, nem do apelo
ao inconsciente de Mário Cesariny. Essencial, clara, cristalina,
tudo o que escreveu confirma uma mundivisão ao mesmo tempo uma
estética e uma ética, um desejo quase romântico de fusão de vida e
obra, que exemplarmente cumpriu.
Urbana ou natural, lusitana ou helênica
Salta aos olhos na
poesia de Sophia a sua inalterável unidade dentro do múltiplo. É
sempre uma voz — implacavelmente única e muito nossa conhecida — que
fala em seus poemas, invariavelmente surgidos, apesar disso, à
distância de toda e qualquer constrição temática. Sua poesia é
atemporal ou histórica, atlântica ou mediterrânea, urbana ou
natural, lusitana ou helênica, política ou subjetiva, mas sempre se
manifesta por tal voz única, que nunca se repete. Subjacente a tudo
isso, através de tudo o que escreveu, essa consciência trágica da
desaparição, do exílio da beleza do mundo a que estamos condenados,
muito dolorida por muito sóbria, que talvez seja um dos fundamentos
dessa mesma unidade.
O mar é o grande
cerne de sua obra, o do Algarve ou o da Grécia, outra grande
obsessão sua. Mais visual que musical — embora alcançasse seus
maiores momentos quando unia essas duas postulações num todo
irretocável — poderia situar-se geneticamente mais para a linha de
Cesário Verde do que para a de Camilo Pessanha, não fosse tudo isso
falsificações práticas que tentam escamotear a grande musicalidade
de Cesário e a espantosa visualidade de Pessanha. Os poemas menos
conseguidos de Sophia são, no entanto, aqueles, geralmente mínimos,
em que o elemento sonoro parece renunciar a acompanhar o outro, e o
complexo milagre do poema curto — que geralmente se resolve numa
iluminação ou redunda em fracasso — não se cumpre totalmente,
tangenciando às vezes o prosaico, coisa que aconteceu em um ou outro
de seus poemas militantes, logo após o 25 de Abril, que lhe deram
grande notoriedade em Portugal, mesmo se não fossem dos maiores
momentos de sua obra.
A seleção da
antologia, escolhida e prefaciada por Vilma Arêas, parece-nos a
melhor possível, registrando todos as facetas de Sophia de Mello
Breyner, e, o que é o mais importante, não omitindo os seus grandes
poemas. Para o leitor brasileiro, além da fruição óbvia de tantos
momentos de alto lirismo, será uma curiosidade a leitura dos poemas
dedicados aos poetas brasileiros seus amigos ou de sua admiração,
como “Manuel Bandeira”, das mais precisas homenagens a ele feitas,
com o acréscimo de ser por uma estrangeira, ou os poemas para Murilo
Mendes e João Cabral, seus amigos, da maior qualidade. Importantes
também são os não poucos poemas referentes a Pessoa, dos melhores
que encararam a sua presença gigantesca, hoje sentida até como
incômoda em Portugal por certos poetas de fraca categoria.
O prefácio situa
bastante bem a posição de Sophia, inclusive em relação ao Brasil,
embora não compreendamos a classificação de Rilke como “romântico
alemão”. O maior, talvez único, defeito do livro, encontra-se numa
questão banal de semiótica gráfica. Muitos dos poemas não levam
títulos. Consideramos um equívoco não marcar de nenhuma forma o
início de cada um, seja por capitular, primeira palavra em negrito,
ou mesmo, em último caso, pelo uso do primeiro verso como título. O
que é imperdoável é marcar o início dos poemas não titulados apenas
pela altura da página. Não haverá leitor na face da terra que, ao
ler a “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de
Portugal”, seguramente um dos mais belos poemas da autora, na página
108, não o emende com o primeiro verso do poema sem título da página
109, exceto o conhecedor da sua obra. E tal possibilidade se repete
algumas vezes. São desleixos de composição que se tornam comuns,
como o inacreditável processo de margear poemas pela direita, como
se lêssemos em árabe. Excetuando esse senão, o lançamento dessa
primeira e vasta antologia de Sophia é uma festa para o leitor de
poesia.
ALEXEI BUENO é
poeta
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