Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Edma Cristina de Góis




Moderno e atemporal


Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil
04.12.2004

 

O sentido de escrever coletivamente ou ser nutrido por uma idéia comum agarrou-se à chamada poesia marginal, da década de 70. Também serve de explicação para as obras tidas “seqüenciadas”, fosse pela temática ou pelo código visual e estético. Mas para falar de tudo isso é preciso citar um nome, quase chave, quase brincadeira saussuriana, não ao acaso. O poeta, compositor e intelectual Antônio Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso, acaba de ser ressuscitado em nova edição do livro “Na corda bamba” (Editora Bem-te-vi), com as imagens cuidadosas e, digamos, “contemporâneas”, do cineasta José Joaquim Salles e do filho dele, o designer Tomás Salles

Quase trinta anos separam o esboço do livro da obra que se pretende definitiva. “Na corda bamba” (Editora Bem-te-vi) acaba por se dividir em duas partes, uma com imagens, segundo contou em entrevista ao Caderno 3, José Joaquim Salles, conhecidas pelo poeta e uma segunda parte de inéditas. O fato é que o público terá em mãos um livro com os poemas do autor de “Beijo na boca”, com uma concepção visual que se adequa às novas tecnologias, que incluem software em 2D (photoshop/illustrador).

Cacaso gostava de experimentalismo e, convenhamos, se estivesse vivo, talvez fosse adepto das animações em 3D. Não aquelas que José Joaquim achava saltar dos óculos escuros nas salas de cinema. Mas um tipo de recurso que vira de ponta a cabeça, através do computador, as idéias de um artista gráfico.

Entre as imagens em preto e branco, estão os poemas mais políticos, as alfinetadas na ditadura militar e o jogo “esperança- desesperança” com o Brasil. Ilustram essa parte “Golpe de Estado”, “Célular mater” e “Relógio Quebrado”, onde uma arma em punho dispara um tiro. No entanto, quem pensa que a parte seguinte, em colorido, representa uma quebra na seqüência, engana-se. O roteiro segue adiante, construindo uma unidade visual incomum e conflituosa. A poesia de Cacaso não se constrói meramente com palavras. O pensamento escapa, termina escapulindo para os desenhos. Não é possível separá-los. Não é possível conformação sem um rebuliço interno, um exercício de procurar a lógica ou achar a equação.

José Joaquim Salles não é só mentor das ilustrações do livro. É co-autor, com Cacaso na primeira parte, e com seu filho, Tomás Salles na segunda, das imagens, além de ter sido grande amigo do poeta. Portanto não é apenas uma função profissional. Cabe a José Joaquim a afetividade de quem conviveu com Cacaso e de quem teve trocas intelectuais significativas com o poeta. Os dois se conheceram nos fins dos anos 60, através da primeira esposa de Cacaso, Leilah. No auge do regime militar, Joaquim Salles foi exilado, encontrando-se com Cacaso em Paris, por volta de 1975. Foi a partir desse encontro que nasceu “Na corda bamba”. O projeto da dupla foi adiado por diversas vezes, fosse porque Joaquim Salles parava os desenhos por conta dos seus trabalhos em cinema, fosse por outras implicações.

Em entrevista, por telefone, ao Caderno 3, José Joaquim Salles conta como foi retomar essa dívida com o velho amigo Cacaso, e os pormenores dessa aventura que foi reerguer o projeto de “Na corda bamba”.

Caderno 3 — Na época que Cacaso reuniu os poemas do “Na corda bamba”, vocês já pensavam em publicá-lo mais ou menos com esse conceito visual?
José Joaquim Salles- Em Cacaso, a imagem se desenvolve no poema. O conceito visual existe desde 1975, quando nos encontramos em Paris. Meus desenhos são simples. Não sou profissional do desenho. Lembro que Cacaso jogou sobre a mesa um envelope cheio de poemas para eu ver. Ele foi, sei lá pra onde, Holanda ou Inglaterra e, quando voltou dez dias depois, tinha feito alguns desenhos. Eu tenho o caderno com os originais dos poemas até hoje. Quando o livro chega na parte do Brasil se torna caótico. Cacaso conheceu os desenhos em preto e branco. Na época que ele faleceu, a gente estava trabalhando num roteiro de cinema, o “Acaso”. Era 1986 ou 1987. Depois eu fui trabalhar no filme “Luar sobre Parador”, em seguida tive outros trabalhos e novamente deixei os desenhos de lado. Quando ele morreu fiquei mais desanimado. Ainda tem outra história, que eu prefiro não falar. Jogaram fora os originais. Mas eu tinha uma xerox do livro, usada para testar o formato sanfona. Em xerox funcionou, mas depois eu vi que não tinha viabilidade de impressão, sairia muito caro. Isso aconteceu no começo dos anos 80, pra começo de 90. Nunca parei. Até que uma amiga viu e quis que eu terminasse. Ela disse: “no computador a gente faz isso”. Fiquei besta. Eu pude salvar o livro. O conceito já estava discutido. Foi por motivos pessoais que não consegui conciliar o cinema com o livro. Mudei completamente de técnica. No meu trabalho no cinema, eu meio que dirijo o desenhista. É meio estranho, eu sei. Sou “cyber-idiota”. A segunda parte de “Na corda bamba” é muito diferente da primeira. O Cacaso assumiria a cibernética. Se ele tivesse vivo, estaria usando esses programas de computador. Por isso no final do livro eu digo “Do Mimeógrafo ao Computador”. Vejo os desenhos em preto e branco como a parte mais política do livro. Eu conectei por imagens as palavras de Cacaso. A esquerda nunca fez uma autocrítica, completa, cutucou o leão com vara curta. Eu, pessoalmente, me envolvi com a ditadura. “Célula mater, unidos venceremos” fala disso. Eu gosto das duas partes de maneria diferente. O Cacaso comprou o conceito de cara. “Homem sem Profissão” e “Santa Ceia”, ele não viu, mas nós discutimos.

— Quando você foi exilado, Cacaso esteve em Paris. Qual a lembrança desse encontro?
José Joaquim Salles - Queria que ele fosse ressuscitado. Eu trabalhei no livro de 1975 a 1987. São doze anos de contribuição, não continuamente. Não fiz em linha reta. Ele foi me visitar em Paris. Ele era muito engraçado. Na maneira de vestir. Ele faz uma falta desgraçada. A gente foi ficando muito amigo. A gente se conheceu através da Leilah, a primeira mulher dele. Ele tinha mania de carregar cadernos. O que tem de poesia não publicada é enorme. Deve haver uns quarenta cadernos. São colagens de passagens de Cacaso por lugares e pessoas. Quando eu voltei para o Brasil, acho que em julho de 75, mais ou menos, fui morar com meu pai. Depois de cinco anos fora, eu era quase um turista. Caí de cabeça num filme e mais uma vez adiei o livro. Conheci minha segunda esposa na casa do Cacaso. Nosso primeiro encontro foi em 1967, eu cursava Filosofia na UFRJ. Andávamos muito na casa dele. A gente discutia tudo e era uma efervescência intelectual. Ainda não vi nenhum livro que trate dessa época de forma definitiva. Nos anos 60, acontecia um ventania ideologia no mundo.

— Poesia é difícil e não é só resultado de inspiração. Aliás, acho que tô falando de poesia de forma ortodoxa... A idéia era a curtição ou a produção séria, pensada?
José Joaquim Salles- Ele já tinha publicado livros em editoras tradicionais. Diante do acirramento da ditadura, uma parte da nossa geração foi para a guerrilha e a outra para o desbunde. Alguém publicava cem livrinhos e pronto. Já Cacaso foi um pouco teórico dessa geração. É preciso lembrar que havia o Cacaso em prosa.

— Como foi desengavetar esses poemas, esse passado, essas lembranças de Cacaso tanto tempo depois...
José Joaquim Salles - Eu não tirei da gaveta. Eu fechei uma gaveta da minha vida e isso tem me dado uma felicidade danada.

— A sua experiência no cinema escorrega para o livro. Você fala em travelling cinematográfico, por exemplo...
José Joaquim Salles - O que fez Cacaso gostar dos meus desenhos foi esse espírito. Ele não me via como ilustrador. Eu não me via assim. Eu continuo embuído no cinema e continuo assim. A poesia de Cacaso é seguida, se desenrola na imagem. O livro chama-se “Na corda bamba”. O traço do tiro é uma corda bamba. Minha profissão era o cinema e não o desenho. O livro é uma montagem. A primeira parte é lânguida e quando chegamos ao Brasil se torna caótico porque esse país não tem solução. A bala não dá volta. É uma bala perdida.

— Você se perguntou o que faria Cacaso hoje, tão longe do mimeógrafo e tão perto da aldeia global de McLuhan. Já conseguiu responder a esta pergunta?
José Joaquim Salles - Na prática sim, porque fiz o livro. Fiz o que todos podem, utilizando a tecnologia. Na teoria não consegui responder a essa pergunta. Meu filho Tomás assina comigo porque ele faz a segunda parte. Foram três meses trabalhando o dia inteiro. Eu ficava horas brincando com as ferramentas. “Na corda bamba” é a reprodução de um espaço virtual. Eu sabia que eu queria essas imagens.(ECG)


 

 

 

 

06/01/2005