Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Dimas Macedo

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William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Subitamente


Subitamente
é preciso que os relógios parem,
porque tudo será pedra sobre pedra,
e tudo.
Não mais restarão
as tuas mãos que necessito,
as tuas palavras sem gestos
que eu procuro...
não mais restará o teu silêncio
que o meu silêncio pede,
pois as armas e os brasões
hão de florir por sobre a infância,
e tudo será rocha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Espelho


O corpo avança
apalpo a busca
tateio o labirinto.

Em mim
a dor lacera,
dói a solidão.

Em tudo o ser
reage aos passos
pousados no silêncio:
concluo a exatidão
da minha ausência.

No espelho
a meta se assemelha,
reajo à magia, ao perfil,
afasto a sombra.

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Poema


Há uma hora em que nos decompomos
e indefinidamente vagamos
entre rosas de sangue.

Há uma hora em que nos despimos
e ocultamos o rosto
e velejamos pelas bordas do caos.

Há uma hora em que copiamos o sonho
e tecemos loas ao tempo
e nos rendemos exaustos.

Há uma hora em que não é possível
o compasso do corpo
nem o corpo se quer sua memória.

Há uma hora em que morremos
e uma hora em que o poema
se torna uma necessidade inarredável.

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Palavras


Para me suportar
a mim mesmo me basto.
Para não me morrer de tédio
mergulho-me palavras.
Sou pétalas de sons
murmuradas ao vento.

Desnecessito-me no hábito.
Desminto-me
nos braços de Évora.
Devoro-me nuns lábios
que não teriam sido.

Sendo-me anjo
o amanhã será outro dia.
Ou um sopro de palavras
perdidas. Ou o nada.

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Escritura


Eleutheria, Eleutheria*,
como eu queria os vastos domínios
de um Capitão-Mor do Ceará
para cantar a geografia
e a linguagem dos sertões
que se perdem dos Inhamuns ao Jaguaribe
e que atravessam
as soberbas ribeiras do Salgado
túrgidas de fazendas de gado
e de civilizações curraleiras
esquecidas nas marcas das porteiras
e no aconchego dos velhos casarões
onde em camas ardentes
se envolveram corpos e abraços
e o compasso de lábios gotejantes
e flamejantes de espumas
e de cristais atávicos
rescendendo ao húmus dos currais
e das caatingas ceifadas em messes de equinócio.

Que ócio é a vida, Eleutheria,
cantar o tédio sem cor da poesia
que não se comunica com o chão
Cantar as espadas de dor do coração
na megalópole
e nunca haver galopado no vento Aracati
que varre as areias salobras do meu coração
Os ventos plurais que sopram
os campos gerais do Ceará
do começo ao fim das estações
mugindo reses tresmalhadas
e ventanias de esporas ruminantes
sangrando dorsos e ancas
em tempos de espera e de espigas maduras.

Ah, Eleutheria,
a arqueologia dos sertões
se emoldurou em mim
como as marcas de ferro
e de couro e os farpados
com que meus ancestrais
ferravam gado
e pariam valentias
e demarcavam terras
e fábricas de melaço
e adocicavam meu corpo
para as colheitas de uns olhos vegetais
que não percebem que nasci Narciso
de gerais paixões
e de outras lavouras outonais.

No cais, Eleutheria,
espero notícias do sertão
e no coração
alimento vigílias metafísicas
e me ressangro em estigmas
e me alucino e me ardo
Me cavalgo no tempo
e o espaço do sonho é o sertão
onde deixei a infância e a paixão
pela conquista do mundo
e pelo mundo palmilho
as ásperas estradas do desejo
sem o beijo salgado da amada
e sem o Salgado me afagando os pés
e me queimando o sal das ilusões.

Meu corpo, Eleutheria,
é um condomínio de dores e aflições
como os sertões em épocas de estiagem
Minha canção é a aragem
que uns lábios pronunciam
Meus passos se anunciam vacilantes
entre a partilha do vento e o sertão
e os meus muitos amores impossíveis
porque o sertão é o mundo
em que recrio os espaços da infância
onde em tardes de sol eu me despia
e me envolvia
com a beleza
e o eterno vigor da minha mãe
que me ofertava a rosa do desejo
e me acariciava
com o ósculo de Deus em suas mãos
como se eu fosse de Deus o escolhido
Entretanto
sou o Prometeu que não se concilia
Sou a dúvida que Cristo fermentou
e que alimentou a lira de Orfeu
pois resvalo meus olhos pela vida
e dou a minha vida pela arte
Me pressinto a dialética das partes
e a intuição de um fio de linguagem
que não se cumplicia
porque a vida não se justifica
sem os encantos do amor e a utopia.

No sonho, Eleutheria,
me disponho à aventura do sonho
e me morro em cada manhã
e em cada manhã renasço
para enfrentar o pesadelo da morte
e o fantasma da morte
que me ronda a vida
Por isto
sou o que sou
no percurso da vida que floresce:
minha primeira metade é um anjo
a outra é um demônio
como se eu fosse
a própria ambivalência da arte
e o desespero que faz parte do sonho
e se replanta pelos campos alados do sertão.

Ah, Eleutheria,
meu coração é um vasto domínio
de muitas incertezas
e de superstições e de cascalhos
e de espantalhos
e de outras crendices do sertão
As cordas da canção
dos velhos aedos populares
e os lupanares da vida
tudo isso tem haver
com a minha formação
e com o sertão tostado e ressentido
porque nos lupanares da vida
me desamo e desarmo
a lógica da metáfora
e os punhais de dor do meu poema
e a recepção da estética
porque não quero os prazeres do céu
nem os segredos do mundo
Quero o mundo e no mundo quero
o amor de Luana ou de Isabel
para me ser feliz e me pacificar
e me exorcizar
de pesados tormentos e aflições
e me dizer:
ou serás a ruptura do ácido
ou não será a poeira dos caminhos
ou não terás o carinho
e a compreensão do desespero do mundo
porque o mundo é mágico,
Eleutheria,
e eu sou apenas um poeta
de olhos azuis e exóticos
Sou apenas o sonho
e no sonho me consinto
a travessia do corpo
e as pulsações e a essência da vida
e o sentido de cada descoberta.

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* Eleutheria corresponde à palavra liberdade, em grego.

 

   

 

 

08/03/2007