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Luís Vaz de Camões




Interlocutores: Délio, Alcido e Galásio




DÉLIO

Agora, Alcido, enquanto o nosso gado
pasce diante nós, manso e seguro,
sentemo-nos aqui neste abrigado.

Logremos este sol sereno e puro,
que livre se nos dá, antes que venha
a noite fria com seu manto escuro.

O rico com seu ouro lá se avenha;
não se farta a cobiça coa riqueza;
mais arde o fogo quando tem mais lenha.

Com pouco se contenta a Natureza.
Quem isto bem olhasse, certifico
que não fugisse tanto da pobreza.

O sol também me aquenta, como ao rico;
a fonte água me dá, frutos a terra;
com pouco mantimento farto fico.

Ah! que a má vaidade nos faz guerra!
Para que gasto tempo em mais palavras?
Os olhos da razão esta nos cerra.

Alcido, tens ovelhas e tens cabras,
de que tiras da lã, tiras do leite;
e não te faltam campos em que labras.

Inda tu queres mais? Amigo, eu hei-te
de falar claro e sem lisonjerias,
não hajas medo tu que eu as afeite.

Tu cantavas Amor, Amor tangias;
falava a tua frauta, agora é muda.
Que mal te mudou tanto em poucos dias?

ALCIDO

Muda-se a idade, Délio; e, se se muda
com ela a condição, nada me espanto;
o gosto me ajudou, já não me ajuda.

Se já cantei Amor, se Amor não canto,
culpas do tempo são, que vai mudando
o meu cantar alegre em triste pranto.

O tempo, que tão leve vai voando,
Délio, não torna mais; e assi fugindo,
mil claros desenganos nos vai dando.

Pouco a pouco se veio descobrindo
o mal de uma esperança vã e incerta,
que me deixou chorando, e foi-se rindo.

Quem nasce sem ventura ou quem acerta
de fazer fundamento em peito alheio,
de mil contas que faz nenhuma é certa.

DÉLIO

Pois se isso entendes tu, donde te veio
sentir tão de verdade as sem-razões;
não sendo de outra cousa o mundo cheio

ALCIDO

Não queres tu que sintam corações
obrigados com dor a sentimento,
vendo a razão vencida de afeições?

DÉLIO

Enfim, todas as cousas querem tento.
Encobre a dor, e guarda-te de extremos,
que sempre trazem arrependimento.

Ao nosso doce canto nos tornemos:
das nossas Ninfas, belas inimigas,
crueza e formosura celebremos.

ALCIDO

Como cantarei eu novas cantigas
em terra tão estéril, cheia de ira,
que nega flores e que nega espigas?

Pendurei num salgueiro a minha lira:
ouvi-la ao som do vento é uma mágoa;
em lugar de tanger, geme e suspira.

A Amarília pintei; pintada trago-a
aqui neste meu seio, e também chora.
Seus olhos me dão fogo, os meus dão-lhe água.

Mas vejo vir Galásio.

DÉLIO
Venho embora.
Galásio, queres tu cantar comigo?

GALÁSIO

Eu nunca me roguei: menos agora.

DÉLIO

Cantaremos de Amor cruel imigo,
ou brando e amoroso, em razão pasto,
tirano e cego, e cego até consigo?

GALÁSIO

Cada qual cante do que for seu gosto:
quer mimos, quer rigores de Amor fero,
ou de olhos verdes cante ou de alvo rosto.

ALCIDO

Enquanto vós cantais, recolher quero
o gado, que são horas de ordenhar;
à noite na malhada vos espero.

GALÁSIO

Isso não: hás-de ouvir para julgar
qual de nós melhor canta e melhor sente.

DÉLIO

Eu já não cantarei sem apostar.
Aposto o meu rafeiro, que Valente
se chama, e com razão; que o lobo afasta
se não cantar mais branda e docemente.

GALÁSIO

Um cervo manso aposto.

DÉLIO

Isso não basta:
põe mais um par de cabras.

GALÁSIO

Deus me guarde;
porque, Délio, este gado é da madrasta.

ALCIDO

Fazeis-me vós juiz? Quereis que aguarde?
Ora cantai sem preço e sem inveja;
e seja logo, porque já é tarde.

DÉLIO

Liarda minha, branca mais que a neve,
e muito mais corada que a grã fina;
se inda Amor a vencer-te não se atreve,
que fará quem de amor por ti se fina?
Eu morro, e tu meu mal julgas por leve?
Não vês tu como já me desatina?
Ai triste, que me vêem vales e montes,
regados de meus olhos feitos fontes!

GALÁSIO

Marfida, branca mais que o branco leite,
vermelha muito mais que a rosa pura,
assi descuido em ti nunca suspeite,
assi me trates inda com brandura!
Que a cabana, que a vida e alma enjeite
por ti, quando tu, mais que mármore dura. . .
Testemunhas serão montes e vales,
a quem dou larga conta de meus males.

DÉLIO

Quando a minha Liarda desencolhe
os seus cabelos de ouro, longo, ondado,
o Sol, de pura inveja, se recolhe
corrido de se ver menos dourado.
Livre pastor não há, que bem os olhe,
sem se achar logo neles enlaçado.
Ai, não soltes, Liarda, os teus cabelos,
pois tanto prendem quantos ousam vê-los!

GALÁSIO

Os tristes corações se tornam ledos,
ouvindo de Marfida o doce canto;
os furiosos ventos estão quedos;
não guia o claro Sol seu carro entanto.
Converte-se a dureza dos penedos
em brando amor; Amor desfaz-se em pranto,
vencido dessa voz, doce Marfida;
mas tu nunca de Amor foste vencida.

DÉLIO

O campo de verdura vejo pobre;
o céu chuvoso sempre, e turvo o rio;
da sua leda folha a terra cobre
o bosque, que foi já verde e sombrio.
Mas se Liarda o rosto seu descobre,
logo desaparece o tempo frio.
Consigo a Primavera traz Liarda.
Ai, quem a visse já! Ai, quanto tarda!

GALÁSIO

A triste Progne já desapareceu;
a toda flor o frio foi imigo;
a doce Filomela emudeceu,
rouca de lamentar seu mal antigo
Mas venha por aqui quem me venceu
com um só volver de olhos, que eu me obrigo
que as aves tornem logo a seus amores,
e os campos se matizem de mil flores.

DÉLIO

A viva chama, aquele vivo ardor
que brando sinto já pelo costume,
de noite dá de si tal resplandor
que os pastores vêm dele a tornar lume.
Pasmados ficam, vendo em mi de amor
o fogo que me queima e não consume.
E tu, por quem eu ardo noite e dia,
quando vês tal ardor, ficas mais fria.

GALÁSIO

Eu sempre choro e tanto já chorei,
vencido da grã dor que na alma tinha,
que mil vezes de lágrimas fartei
meu gado, quando a fonte a buscar vinha.
Chorando, as duras pedras abrandei;
mas nunca a ti, cruel imiga minha,
que, vendo que por ti me estilo em água,
nenhuma mágoa tens de minha mágoa.

DÉLIO

Quando vires, Liarda, o nosso Lima
que lá vai de meu choro acompanhado,
tornar com suas águas para cima;
de seu curso esquecido costumado;
então embora julga, então estima
que tenho noutra parte o meu cuidado.
Mas deixarão os rios de correr,
primeiro que deixe eu de te querer.

GALÁSIO

Estas serras, Marfida, por certeza
de minha firme fé só quero dar-te
quando, com espantosa ligeireza,
daqui correr as vires a outra parte;
então cuida que falta em mi firmeza,
que então deixarei eu, meu bem, de amar-te.
Mas mudar-me daqui bem podem elas,
e eu não mudar de mi graças tão belas.

ALCIDO

Se esta vontade minha não deseja
a vossos versos dar justos louvores,
hora nunca na vida alegre veja.
Aceitai meu desejo, meus pastores:
mais vos não pode dar quem traz o esprito
de todo entregue a danos, mágoas, dores.
Mas por que dê de vós público grito
a leve Fama, como vedes, deixo
o vosso canto e o meu juízo escrito
no liso tronco deste verde freixo.
Délio neste lugar doce cantou
com Galásio, que doce respondia;
um Liarda, Marfida outro louvou,
com inveja de qual melhor diria.
Alcido, que o seu canto bem notou,
por ver quem a vitória levaria,
como livre juiz, deu por sentença
que não havia entre eles diferença.


 


 

 

 

 

 

17/03/2006