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Luís Vaz de Camões




Nas ribeiras do Tejo...




Nas ribeiras do Tejo, a uma areia
de rochas coroada, cada dia
vinha Ergasto chamar por Galateia.

Não tinha que esperar, mas não queria
perder sua esperança, e dos penedos,
que o Tejo gasta, aprende e aporfia.

Depois de discorrer por seus segredos
uma vez começou; e entanto teve
o rio sossegado, os ventos quedos.

Que fica por provar? Ou que mais deve
fazer quem, por salvar dum risco a vida
muito contente a muito mais se atreve?

Roguei, chorei, e a fera embravecida
tão firme em ódio tem posta a vontade
quanto de amor mudada e arrependida.

Porventura mostrou qualquer saudade
depois de minha ausência? Porventura
teve de minhas lágrimas piedade?

Segue pois, fera, segue aquela dura
condição que te ensina, que esperança
tenho de teu castigo bem segura.

Prove suas mesmas leis tua esquivança;
e o Céu, que a meu pesar te vê mudada,
ordene sobre ti cruel vingança.

Já pode ser que, tendo exp'rimentada
a seta de que tantas vezes usas,
dês a fúria passada por passada.

Receberás melhor minhas escusas;
e ouvindo-me queixar, dirás comigo
que sem razão minhas razões acusas.

Que falo, ou onde estou? A que perigo
me põe esta cruel? E eu vivo nela,
pera mim peço logo este castigo.

Vive, pastora, alegre, e uma estrela
benigna influa em ti tantos favores
que sejas tão ditosa como és bela.

Ouças sempre soar em teus louvores
esta nossa ribeira e largamente
te dêem as plantas fruto, o prado flores.

Comigo corra tudo diferente,
não me refresque a viração no Estio,
nem nos frios do Inverno o sol me aquente.

Quero aqui num lugar ermo e sombrio,
como nocturno pássaro, ficar-me,
de meus olhos fazendo um largo rio.

Pastores, que virão por consolar-me,
vendo que seu trabalho em vão me cansa,
por remédio melhor terão deixar-me.

Galateia cruel, também descansa
na tempestade o vento furioso;
tua fúria somente se não amansa.

O nosso campo quem te fez odioso
que tu, quando por ele passeavas,
a todo o tempo achavas gracioso?

Não lhe negues a graça que lhe davas,
que o gado já sem ela o não conhece,
e nascem tojos, onde flor criavas.

Vem, Galateia, ver quando amanhece,
as aves saudar a fresca aurora,
tanto a ausência do sol as aborrece.

Verás o Tejo que, indinado outrora,
sobre esta areia sai lançando escuma,
e escassamente as ondas move agora.

E tu, cruel, não queres que presuma
inda alguma hora ver teu peito brando,
senão que sem remédio me consuma.

Os pássaros pelo ar, de quando em quando,
param a meu cantar; mas em ouvindo
teu nome, voam logo, e o vão cantando.

Estão estes salgueiros repetindo,
co som de murmurar da verde rama,
os versos que em seu tronco estive abrindo.

Tu, Galateia, surda a quem te chama,
ingrata a quem te serve, em pago deste
desprezo a quem te adora, ódio a quem te ama.

E tanto em cruel ira te acendeste
que, para me deixar, também deixaste
o surrão que a teus ombros já trouxeste.

Porque o mandei fazer o desprezaste;
porém nunca vejas que de outrem seja,
basta que a teu pescoço o penduraste.

Não falta outra pastora que o deseja;
foi feito para ti, ninguém o traga;
quem quer que o desejar morra de inveja.

Quando o vejo comigo, uma mortal chaga
renovo com lembranças saudosas,
que o decurso do tempo não apaga.

Também tenho guardadas aquelas rosas
.que te ofereci, que me enjeitaste logo;
parece que ainda estão de ti queixosas.

Secou-as tua ausência e aquele fogo,
que acendes em meu peito com fugir-me
e com mais dura estar quanto eu mais rogo.

Como poderei eu de ti partir-me,
se tua imagem dentro em mim faz guerra,
sem nunca mais deixar de perseguir-me?

Buscarei com meu gado estranha terra;
habitarei onde outro sol mais arde,
ou onde a neve tem coberta a serra.

Mas manda Amor dentro na alma guarde
esta dor, porque a traga na memória
quando amanhece, e quando se faz tarde.

Quem me dissera, estando em minha glória,
que havia ainda de ver tão desprezados
estes despojos da passada história!

Doces despojos por meu mal guardados,
alegres noutro tempo, agora tristes,
que no seio de amor fostes criados!

Quando a minha Pastora irada vistes,
disse-vos o mal, que juntos padecemos.
Como partir-vos dela consentistes?

Fizéreis-lhe por mim grandes extremos,
e, quando eu pena alguma merecera,
por vós disséreis: «Nós que merecemos»?

Solitário sem vós melhor vivera,
e as discórdias cruéis que esta alma minha,
quando vos vejo, tem, não nas tivera.

Ah, cruel Galateia, tão asinha
se esquece amor, que tanto fundamento,
tantas raízes em teu peito tinha!

Aquele tão contino pensamento,
aqueles sonhos sempre em meu proveito,
tudo lanças, furiosa, ao vento?

Aquele monte de firmeza feito
que me val' já contigo, ou que me presta,
se tudo em nuvens vãs vejo desfeito?

Tanto segredo alegre, tanta festa,
tanta conversação, sem prejuízo,
em que passaste já comigo a sesta!

As histórias, as práticas de riso,
as dissimulações por poder ver-te,
aquelas zombarias tão de siso,

podem deixar agora de mover-te?
Ou com fingido esquecimento queres
aprender pouco a pouco a esquecer-te?

Se isto pretendes, nunca tal esperes,
que minha fé, voando como esprito,
lá te há-de perseguir como estiveres.

Inda agora me ensaio e me exercito,
pera seguir, pera sofrer durezas,
que este meu sofrimento é infinito.

Chovam sobre mim fúrias e asperezas,
que as fachas, que nesta alma estão ardendo,
fogo que não se apaga as tem acesas.

Ah, rústico Pastor, que andas fazendo?
Tu buscas Galateia, ela se esconde,
e essas tuas razões, que estás dizendo,
ouve-tas muito bem, mas não responde.


 


 

 

 

 

 

17/03/2006