Luís Vaz de Camões
Cá nesta Babilónia adonde mana
Cá nesta Babilónia adonde mana
hipocrisia, engano e falsidade;
cá donde ousada toda carne humana
a todo arbítrio vive da vontade;
cá donde enrouqueceu da lusitana
musa o furor heróico e suavidade;
cá donde se produz por cega via
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá donde o puro amor não tem valia,
porque Baco o tem hoje desterrado;
cá donde a frecha de ouro não feria
senão cabelo preto e alfenado;
cá donde a loura trança não servia
nem o rosto de sangue matizado;
cá donde nada vale à glória humana,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá donde o mal se afina o bem se dana,
se algum a terra em si quer produzir;
cá donde a falsa gente maometana
a glória toda funda em adquirir;
cá donde multiplica a mão tirana
professa em mais crecer, matar, mentir;
cá donde o fazer bem é vilania,
e pode mais que a honra a tirania;
cá donde a errada e cega monarquia
de fabulosas leis está vivendo
e à força de um amor engrandecia
o nefando Alcorão em que está crendo;
cá donde nada vale a poesia
e se está da lei dela escarnecendo;
cá donde a fidalguia maometana
cuida com nome vão que a Deus engana;
cá nesta Babilónia onde a nobreza
da lusitana gente se perdeu,
e do grão Sebastião toda a grandeza
irreparavelmente se abateu;
cá donde algum mentir não é baixeza
e os méritos esmola – assi creceu
da cobiça mortal a sem-razão -
com esforço e saber pedindo vão;
às portas da cobiça e da vileza
estes netos de Agar estão sentados
em bancos de torpíssima riqueza,
todos de tirania marchetados.
É do feio Alcorão suma a largueza
que tem para que sejam perdoados
de quantos erros cometendo estão,
cá neste escuro caos de confusão.
Cumprindo o curso estou da Natureza,
ilustre Dama, neste labirinto;
mas quem usa comigo mais crueza
é tua condição, que na alma sinto.
Acabe-se algum dia tal tristeza
e este sentido mal que em versos pinto.
E, pois na alma é sentido e coração,
vê se me esquecerei de ti, Sião!
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